terça-feira, 30 de novembro de 2021

Bem vindos ao Metaverso – alienação 3.0

O metaverso chegou e até o Facebook já mudou de nome (mas não de ramo de negócio) para se adaptar à nova realidade... virtual (ler aqui ou aqui). Será um mundo de avatares e de aparências, pronto a consumir e a gastar dinheiro... virtual? O Second Life (ainda se lembram?) foi um mero ensaio que surgiu talvez antes do tempo, mas terá servido para treinar alguns dos aspirantes a avatares dos novos mundos virtuais. Na versão portuguesa da entrada da Wikipedia sobre metaverso pode ler-se:Acreditando que o metaverso é o futuro da internet e tecnologia, Mark Zuckerberg, CEO do Facebook, mudou em 2021 o nome de sua empresa para Meta Platforms Inc., ou Meta. Ele diz que a empresa irá abranger tudo o que eles acreditam, focando na construção do metaverso.Acreditar é claramente uma palavra-chave (que já fazia parte do glossário do ‘empreendedorês’). A Microsoft também não podia ficar de fora desta promissora e ‘disruptiva’ inovação tecnológica e já lançou uma parceria com a Accenture para criar escritórios virtuais – projecto Nth Floor.

No vídeo de apresentação do ‘facelift’ do FB (que alguns apelidam de manobra publicitária, por surgir convenientemente numa altura em que o nome da corporação andava nas bocas do mundo por razões menos positivas), o seu CEO surge, ele próprio com um aspecto sinistro de avatar (com um sorriso e gestos forçados de ciborgue misantrópico), a louvar as fascinantes possibilidades do admirável mundo novo virtual. Uma agência de promoção turística islandesa (Inspired by Iceland) não deixou escapar a oportunidade de parodiar aquele vídeo, lançando a sua própria versão recheada de humor escandinavo – ver aqui.

O metaverso integra-se no processo mais alargado da chamada ‘transição digital’, fortemente intensificado com a crise pandémica. Trata-se de mais uma patranha da BigTech para aumentar o seu volume de negócio e o seu poder, promovendo o ‘outsourcing’ de uma aspiração humana que durante séculos era praticada por cada pessoa através da sua própria imaginação, de meditação ou de oração. Mas as consequências mais alarmantes, para além do poder acrescido de controlo e manipulação entregue a grandes corporações, são o aprofundamento da desconexão entre os seres humanos e o mundo natural, bem como a erosão das nossas capacidades de resistir à alienação e de criar as nossas próprias realidades (ler p.ex. aqui ou aquiou ver este vídeo).

Num cândido artigo de opinião no site da SIC-N o autor escreve: “Quando pensamos nas controvérsias que envolvem hoje o Facebook, ficamos apreensivos com a ideia de que o interesse económico dos seus acionistas nem sempre estará alinhado com a utilização de todo este poder a favor do bem. Mas vamos acreditar que seremos capazes de aproveitar tudo o que esta nova internet irá potenciar e limitar os seus eventuais efeitos negativos.” Acreditar, uma vez mais. Na benevolência dum gigante da BigTech? É como acreditar no Pai Natal – ou até em Deus…

Curiosamente (ou talvez não) soube-se este ano que o mesmo FB se propõe fortalecer e alargar as parcerias com diversas igrejas, em particular com várias congregações evangélicas nos EUA (ler p.ex. aqui). Num artigo de opinião no ‘The NY Times’ (é possível ler o artigo na íntegra aqui), a sua autora escreve: “(…) after the coronavirus pandemic pushed religious groups to explore new ways to operate, Facebook sees even greater strategic opportunity to draw highly engaged users onto its platform. The company aims to become the virtual home for religious community, and wants churches, mosques, synagogues and others to embed their religious life into its platform, from hosting worship services and socializing more casually to soliciting money. (…)  The partnerships reveal how Big Tech and religion are converging far beyond simply moving services to the internet. Facebook is shaping the future of religious experience itself, as it has done for political and social life.Trata-se portanto de juntar duas abordagens à evangelização, de natureza diferente, mas alegadamente complementares e com potencial de se fortalecerem mutuamente. Num aparente deslize registado pela jornalista, um pastor de Atlanta justificou a sua parceria com o FB como tendo o objectivo de: “directly impact and help churches navigate and reach the consumer better.” “Consumer isn’t the right word,” he said, correcting himself. “Reach the parishioner better.”

A palavra metaverso foi alegadamente cunhada em 1992 pelo escritor de ficção científica Neal Stephenson na sua novela ciberpunk ‘Snow Crash’. O autor do artigo do ‘The Conversation’ citado acima alerta: “Stephenson’s original vision of the metaverse was very exciting, but also full of possibilities for both online and real world harms, from addiction, to criminality, to the erosion of democratic institutions. Interestingly, Stephenson’s metaverse was mostly owned by big corporations, with governments relegated to being largely insignificant paper-shuffling outposts. Given the current tensions between big tech and governments around the world over privacy, freedom of speech and online harms, we should seriously consider what kind of metaverse we want to create, and who gets to create, own and regulate it.

Vamos querer embarcar em mais esta sedutora aventura tecnológica acreditando na alegada benevolência das grandes corporações que a querem providenciar e vender?


Nota final: usei no título a expressão ‘alienação 3.0’ para enfatizar que já tínhamos experimentado vagas anteriores de outras formas de alienação, que vão desde as formas de escapismo mais convencionais – recorrendo p.ex. a álcool, drogas ou outros estupefacientes (1.0) -, até às ferramentas mais sofisticadas introduzidas no século XX por via de diversas tecnologias – mass media, marketing e tecnologias digitais de 1ª geração (2.0).

segunda-feira, 22 de novembro de 2021

Resistir à sexta-feira negra

Aproxima-se mais uma ‘Black Friday’ (BF) alimentada pela habitual propaganda agressiva e pelo vício do consumismo, que nem a pandemia atenuou - ver p. ex. meu post de 2019. Esse post inclui o link para um video que explica a origem da BF, assim como os seus impactos ambientais e sociais, propondo formas de lhe resistir. Este ano, o mesmo autor do vídeo anterior, fez um outro sobre o decrescimento como caminho alternativo para superar o consumismo - do qual depende o actual sistema capitalista, que apregoa o 'crescimento verde' como alegada solução para a sua própria insustentabilidade.


O sobreconsumo, no caso da moda ('fast fashion'), gera toneladas de roupa rejeitada - incluindo roupa usada que foi doada! - e que se acumula em países do sul global (África, Ásia e América do Sul) – ver p.ex. este vídeo. No deserto do Atacama há agora autênticos montes de roupa que não é reciclada - ver notícias recentes com imagens impressionantes aqui ou aqui, ou ainda este vídeo.


Como escrevi no post de 2019, a escolha também é nossa já que podemos sempre dizer não e aderir ao ‘Dia Mundial sem Compras’ ou ‘Buy Nothing Day’. O site Adbusters propõs este ano uma nova campanha - #TrueCost - para incluir os custos ambientais nos preços dos produtos comerciais, reorientando assim o consumo e gerando fundos que poderão depois ser redistribuídos de forma justa e democrática.

sábado, 9 de outubro de 2021

Cadeia global de abastecimento de mercadorias: o elo mais fraco?

Much like we saw in the securitisation-driven mortgage market in 2008, what was once a world of overabundance could quickly turn to one of intense scarcity.Peter Atwater

“(…) the current [global supply chain] model has proven to be problematic and risk intense. Shorter supply chains will benefit the rejuvenation of local economies as they will have greater resilience and flexibility, and reduced environmental footprint.Sarah Schiffling

Foram recentemente noticiadas nalguns órgãos de informação, embora de forma discreta, as faltas de combustíveis e de alguns alimentos no Reino Unido, que já motivaram pedidos de apoio logístico ao Exército por parte do governo britânico – ver p.ex. aqui ou aqui. Segundo os comentadores citados nestas notícias, o problema deve-se à falta de trabalhadores no sector de transportes, agravada pelo Brexit e pela pandemia, mas também a picos de procura, intensificados pelo pânico induzido pelas próprias notícias. Claro que a situação já serviu de arma de arremesso político, com vários países europeus a acusarem o Reino Unido de estar a pagar o preço da sua saída da UE – ver p.ex. aqui. No entanto, esta situação não está circunscrita ao Reino Unido e acontece também noutras partes do mundo, onde se verificou a acumulação de mercadorias e de navios porta-contentores nos grandes terminais portuários da China e dos EUA, originando escassez quer de produtos em supermercados, quer de componentes electrónicos para automóveis, p.ex. nos EUA – ver aqui ou aqui. Neste último artigo do Financial Times, o autor defende que os problemas na cadeia de abastecimento global se devem aos modelos de gestão ‘just-in-time’ que foram adoptados para baixar custos (e maximizar os lucros), mas que tornaram o sistema demasiado frágil, traçando um paralelo com o papel do recurso à securitização (‘securitisation’) na crise financeira de 2008.

Noutras análises recentes o problema é atribuído às limitações na mobilidade dos trabalhadores do transporte marítimo e terrestre internacional devidas à pandemia – ver p.ex. aqui ou aqui. Várias organizações internacionais ligadas aos transportes alertaram os dirigentes mundiais para esta situação e o secretário-geral da Federação Internacional dos Trabalhadores dos Transportes (IFT), citado neste último artigo, afirmou: “The global supply chain is very fragile and depends as much on a seafarer [from the Philippines] as it does on a truck driver to deliver goods. The time has come for heads of government to respond to these workers’ needs.Trata-se portanto de um problema de logística que expõe as fragilidades do sistema capitalista global, como enfatizou António Guerreiro num artigo de opinião recente. O autor defende que a instabilidade na rede de distribuição global se deve a inovações tecnológicas e estratégias do sistema capitalista focado na maximização do lucro, tornando-a susceptível ao decrescimento demográfico e à falta de mão-de-obra provocada pelas actuais restrições à mobilidade dos trabalhadores. A fragilidade daquela rede já tinha sido evidenciada este ano quando um dos maiores navios porta-contentores do mundo (o Ever Given) encalhou e bloqueou o Canal do Suez durante quase uma semana, tendo então provocado alguns sobressaltos na cadeia de abastecimento global – ver p.ex. aqui ou aqui. Torna-se pois cada vez mais evidente a falácia da desmaterialização da economia prometida pelo capitalismo digital!

Poderá então estar iminente um colapso da cadeia de abastecimento global de mercadorias? Há quem pense que sim, como o autor do blog ‘The economic collapse’ (Michael Snyder), que escreveu vários ‘posts’ recentes sobre este assunto – ver p.ex. aqui ou aqui. Mas será só uma questão de escassez de mão-de-obra ou de má gestão do transporte global de mercadorias? Ou será que já estamos a ver os sinais daquilo que alertavam há quase 50 anos os cientistas do MIT que escreveram o ‘best-seller’ ‘The Limits to Growth’? Como referi num 'post' anterior, os autores daquele estudo foram na altura acusados de alarmismo por preverem que o sistema económico global, baseado no crescimento permanente da produção e do consumo, entraria numa fase de instabilidade ou de colapso algures no séc. XXI, se não ocorresse uma mudança de paradigma económico. Os decrescentistas também já vêm alertando há vários anos para as disfuncionalidades da rede do comércio internacional, defendendo a redução de escala e a relocalização da produção para reduzir as redes de transporte de mercadorias e estimular as economias locais, tornando-as assim mais resilientes e diminuindo os impactos ambientais. A insustentabilidade ecológica e social do sistema económico e produtivo global é aliás a crítica central dos defensores do decrescimento, que preconizam uma mudança sistémica radical para evitar o colapso societal ou minimizar os seus danos. Algo que os poderes instalados querem evitar a todo o custo. Como afirma António Guerreiro: “Decrescimento, seja ele em que domínio for, é o que o capitalismo global não consegue incorporar.

P.S. Descobri mais recentemente (Dez 2021) um post do autor britânico Paul Kignsnorth que partilha a minha tese de que as actuais quebras na cadeia de abastecimento global são sintomas do colapso do sistema económico previstos pelos autores de 'The limits to growth', evocando um conto de E.M. Forster intitulado 'The Machine Stops' escrito em 1909.

quinta-feira, 30 de setembro de 2021

A verdade da mentira: as narrativas mediáticas sobre o Afeganistão

Vinte anos depois do 11 de Setembro, a humilhação americana prova que uma invasão militar e uma guerra para impor o “nosso modo de vida” acabou a fortalecer os fundamentalistas. Que a Administração americana tenha sido apanhada de surpresa é um atestado de ignorância relativamente ao terreno que ocuparam durante 20 anos. Ana Sá Lopes

The vast majority of the money the US spent on that country in the subsequent 20 years was to pay for the bombs they dropped on it. The money spent on building the place up was tiny in comparison. And much of it was lost to corruption. Juan Cole

America’s corporate media are ringing with recriminations over the humiliating U.S. military defeat in Afghanistan. But very little of the criticism goes to the root of the problem, which was the original decision to militarily invade and occupy Afghanistan in the first place. Medea Benjamin and Nicolas J.S. Davies

A retirada americana do Afeganistão em Agosto, depois de 20 anos de ocupação militar, teve cobertura mediática global e foi inicialmente noticiada como uma humilhação para os EUA, com inevitáveis comparações com a retirada desastrosa do Vietnam em 1975 (ver p.ex. aqui ou aqui). Segundo a primeira notícia, “Depois de biliões de dólares e mais de 2 mil mortos entre os soldados norte-americanos, bem como as mortes de dezenas de milhares de civis afegãos, Biden considerou que os Estados Unidos tinham poucas hipóteses de transformar uma nação em grande parte tribal e subdesenvolvida.” O presidente terá afirmado: “A ideia de podermos usar as nossas forças armadas para resolver todos os problemas internos que existem no mundo não está dentro das nossas capacidades”. Depois de décadas em que esse tem sido o pretexto usado pelos EUA para justificar a sua política externa militarista e imperialista, aquela afirmação é no mínimo hipócrita. Biden terá ainda deixado a pergunta: “A questão é a seguinte: está em jogo o interesse vital da América ou o interesse próprio de um dos nossos aliados?”. No editorial de Ana Sá Lopes, a autora apelida de patética a afirmação de ‘missão cumprida’ por parte do secretário de Estado americano, Antony Blinken, lembrando que o presidente afegão fugiu do país um dia após o presidente Biden o ter instado a governá-lo.

Mas muito rapidamente a narrativa mediática mudou o seu foco para a tomada de Kabul pelos Taliban, para as imagens do aparente desespero de milhares de afegãos a tentarem fugir da capital e para a instauração de uma nova cruzada fundamentalista pelas forças que tomaram o poder, em particular contra as mulheres. A campanha de demonização da nova tomada do poder pelos Taliban pelos media foi denunciada por Patrick Martin, num artigo de opinião onde escreve: “all of the tropes employed by the corporate media to ‘sell’ to world public opinion the invasion and occupation of Afghanistan in 2001, no matter how moth-eaten and worn out, are being revived. This serves two purposes: to paper over the war crimes carried out by the US in the past and to prepare public opinion for an intensification of imperialist pressure on the war-ravaged population.”

Esta aparente tentativa de desviar a atenção da incapacidade (ou incompetência) dos militares americanos em cumprirem de facto a sua missão e de branquear a destruição e sofrimento que causaram naquele território com o pretexto da alegada 'Guerra ao Terror', não impediu que vários artigos denunciassem a corrupção interna que deu milhões de dólares dos contribuintes americanos a ganhar ao denominado complexo militar-industrial, que inclui as diversas empresas de armamento e de material militar – ver artigos de Juan Cole, de Chris Hedges e de Medea Benjamin & Nicolas J.S. Davies. Neste último artigo, os autores denunciam também as tentativas de silenciar as vozes que, durante anos, reclamaram a paz e a retirada das tropas americanas do Afeganistão. A hipocrisia dos aliados europeus, que apoiaram activamente a 'Guerra ao Terror', também não passou desapercebida – ver p.ex. aqui ou aqui –, mas o mais chocante foram os anos sucessivos de mentiras do próprio governo americano sobre a ocupação do Afeganistão, ecoadas pelos media dominantes, denunciados p.ex. num artigo recente do jornalista Glenn Greenwald.

As tentativas de abafar ou censurar as opiniões que criticam ou condenam a actuação das sucessivas Administrações norte-americanas tiveram um novo episódio com o anúncio recente da prisão preventiva de um oficial dos fuzileiros navais (U.S. Marine Lt Col Stuart Scheller) por ter publicado vídeos seus no Facebook onde faz afirmações alegadamente danosas para as chefias militares sobre a retirada do Afeganistão – ver p.ex aqui. Esta notícia serve de mote a um vídeo recente do comediante britânico Russell Brand, onde denuncia as reiteradas tentativas dos poderes instalados de silenciar quem os põe em causa, dando também como exemplo o caso de Julian Assange, acossado há anos pelas autoridades norte-americanas, recordando um seu depoimento sobre as verdadeiras motivações da ocupação americana do Afeganistão: alimentar os empreiteiros militares e os senhores da guerra com milhões de dólares do erário público.

domingo, 8 de agosto de 2021

A civilização industrial à beira do colapso

A civilização industrial planetáriaviciada no crescimento económico permanente, encontra-se perante um colapso iminente, tal como foi previsto há quase 50 anos no livro 'The limits to growth' (1972) em que um grupo de investigadores do MIT aplicou um modelo computacional para calcular a evolução de parâmetros-chave socio-económicos baseado em diferentes cenários societais. Os alertas para os sinais do colapso têm sido lançados recentemente por diferentes grupos de cientistas - ver p.ex. aqui ou aqui -, mas a acção política limita-se a tentar manter o sistema a funcionar à custa de tecnologias supostamente salvíficas, mas que apenas adiam o inevitável - a necessidade de uma mudança societal e cultural profunda (ver p.ex. aqui ou aqui). 

O modelo usado pelos investigadores do MIT foi agora testado com os dados dos últimos anos e as suas previsões menos optimistas - criticadas na altura como catastrofistas - estavam (infelizmente) correctas, como os decrescentistas vêm aliás alertando há vários anos (ver p.ex. aqui ou aqui). O novo estudo foi realizado em 2020 por Gaya Herrington (directora de 'Sustainability and Dynamic System Analysis' da multinacional KPMG nos EUA) e foi agora noticiado pela revista Vice num artigo do jornalista Nafeez Ahmed (Jul 2021): ver aqui.

Excertos: A remarkable new study by a director at one of the largest accounting firms in the world has found that a famous, decades-old warning from MIT about the risk of industrial civilization collapsing appears to be accurate based on new empirical data. As the world looks forward to a rebound in economic growth following the devastation wrought by the pandemic, the research raises urgent questions about the risks of attempting to simply return to the pre-pandemic ‘normal.’ (…)  The study represents the first time a top analyst working within a mainstream global corporate entity has taken the ‘limits to growth’ model seriously.

Segundo a autora daquele estudo mais recente ainda há esperança de evitar os cenários mais catastróficos - mas a janela de oportunidade está prestes a fechar-se e as escolhas políticas dos últimos anos estão muito longe de nos conduzir a uma verdadeira sustentabilidade.

(The Course of Empire - Destruction, Thomas Cole, 1836)


sábado, 7 de agosto de 2021

A pandemia como pretexto para impor um apartheid sanitário


(cartoon de Brian Wang, respigado daqui)
Aviso prévio: este é um post sem 'paninhos quentes' ou 'papas na língua'.

A pandemia está a ser usada como pretexto para diabolizar ou ostracizar os 'impuros' e 'egoistas' não-vacinados pelo (pretenso) moralismo de um novo fascismo sanitário, imposto através dos chamados 'passaportes sanitários' ou 'certificados de vacinação' - ver p.ex. aqui ou aqui. Trata-se de um mecanismo reconhecido pela psicologia e usado recorrentemente por sistemas hegemónicos ou totalitários que é brilhantemente desmascarado em mais um lúcido exercício de pensamento crítico do autor norte-americano Charles Eisenstein'Mob morality and the unvaxxed' (Ago 2021) -, cuja leitura recomendo e do qual seleccionei alguns excertos:

(…) defying left-right categorization is a promising new scapegoat class, the heretics of our time: the anti-vaxxers. As a readily identifiable subpopulation, they are ideal candidates for scapegoating. It matters little whether any of these pose a real threat to society. As with the subjects of criminal justice, their guilt is irrelevant to the project of restoring order through blood sacrifice (or expulsion from the community by incarceration or, in more tepid but possibly prefigurative form, through “canceling”). All that is necessary is that the dehumanized class arouse the blind indignation and rage necessary to incite a paroxysm of unifying violence. More relevant to current times, this primal mob energy can be harnessed toward fascistic political ends. Totalitarians right and left invoke it directly when they speak of purges, ethnic cleansing, racial purity, and traitors in our midst. Sacrificial subjects carry an association of pollution or contagion; their removal thus cleanses society.

(…) To prepare someone for removal as the repository of all that is evil, it helps to heap upon them every imaginable calumny. Thus we hear in mainstream publications that anti-vaxxers not only are killing people, but are raging narcissists, white supremacists, vile, spreaders of Russian disinformation, and tantamount to domestic terrorists. These accusations are amplified by cherry-picking a few examples, choosing hysterical-looking photos of anti-vaxxers, and showcasing their most dubious arguments.

(…) The mechanisms that generate the illusion of unanimity operate within science, medicine, and journalism as well as among the general public. Some conform enthusiastically to the orthodoxy; others complain in whispers to sympathetic colleagues. Those who voice dissent publicly become radioactive. The consequences of their apostasy (excommunication from funding, ridicule in the media, shunning by colleagues who must “distance themselves,” etc.) serve to silence other potential dissidents, who prudently keep their views to themselves.

(…) Many if not most people get the vaccine in an altruistic civic spirit, not because they personally fear getting Covid, but because they believe they are contributing to herd immunity and protecting others. By extension, those who refuse the vaccine are shirking their civic duty; hence the epithets “filth” and “assholes.” They become the identifiable representatives of social decay, ready for surgical removal from the body politic like cancer cells all conveniently located in the same tumor.

(…) The fear operating in the ostracism of the unvaxxed is mostly not fear of disease, though disease may be its proxy. The main fear, old as humanity, is of a social contagion. It is fear of association with the outcasts, coded as moral indignation.

(…) The science on the issue [of vaccine safety and efficacy] is so clouded by financial incentives and systemic bias that it is impossible to rely on it to light a way through the murk. The system of research and public health suppresses generic medicines and nutritional therapies that have been demonstrated to greatly reduce Covid symptoms and mortality, leaving vaccines as the only choice. It also fails to adequately investigate numerous plausible mechanisms for serious long-term harm. Of course, plausible does not mean certain: at this point no one knows, or indeed can know, what the long-term effects will be. My point, however, is not that the anti-vaxxers are right and being unjustly persecuted. It is that their persecution enacts a pattern that has little to do with whether they are right or wrong, innocent or guilty. The unreliability of the science underscores that point, and suggests that we take a hard look at the deadly social impulses that the science cloaks.

(…) The foregoing analysis is not meant to invalidate other explanations for Covid conformity: the influence of Big Pharma on research, the media, and government; reigning medical paradigms that see health as a matter of winning a war on germs; a general social climate of fear, obsession with safety, the phobia and denial of death; and, perhaps most importantly, the long disempowerment of individuals to manage their own health.

(…) Whether the totalitarian program is premeditated or opportunistic, deliberate or emergent, the question remains: How does a small elite move the great mass of humanity? They do it by aggravating and exploiting deep psycho-social patterns such as the Girardian [ref.ª às teses do filósofo René Girard sobre o sacrifício social de ‘bodes expiatórios’]. Fascists have always done that. We normally attribute pogroms and genocide to racist ideology, the classic example being antisemitic fascism. From the Girardian perspective it is more the other way around. The ideology is secondary: a creation and a tool of impending violent unanimity. It creates its necessary conditions. The same might be said of slavery. It was not that Europeans thought Africans were inferior and so thus enslaved them. It was that thinking them inferior was required in order to enslave them.

(…) The us of fascism requires a them. The civic-minded moral majority participates willingly, assured that it is for the greater good. Something must be done. The doubters go along too, for their own safety. No wonder today’s authoritarian institutions know, as if instinctively, to whip up hysteria toward the newly minted class of deplorables, the anti-vaxxers and unvaccinated. (…) The campaign against the unvaccinated, garbed in the white lab coat of Science, munitioned with biased data, and waving the pennant of altruism, channels a brutal, ancient impulse.

(…) I don’t want to reduce our current acceleration toward techno-totalitarianism and a biosecurity state by just one psycho-social explanation, however deep. Yet it is important to recognize the Girardian pattern, so we know what we are dealing with, so that we can creatively expand our resistance beyond futile debate over the issues – and most importantly, so we can identify its operation within ourselves. Any movement that leverages contempt in its rhetoric fits the Girardian impulse. Elements of scapegoating such as dehumanization, rumor-mongering, stereotyping, punishment-as-justice, and mob mentality are alive within dissident communities as they are in the mainstream. Any who ride those powers to victory will create a new tyranny no better than the previous.

Aproveito para declarar que não me vacinei e não tenciono vacinar-me, apesar de toda a chantagem mediática, social e psicológica à minha volta. Tal como o autor do artigo que partilhei, não sou 'anti-vaxxer' e reconheço a validade e utilidade de diversas vacinas. No entanto, considero que a natureza desta doença não justifica a campanha de vacinação planetária e recuso-me a ceder ao clima de terror e à propaganda que estão a ser lançados sobre as pessoas a reboque desta pandemia - ofuscando outras abordagens à sua mitigação, censurando qualquer posição não conforme à narrativa oficial e causando danos psicológicos e sociais tremendos e potencialmente irreversívies. Oponho-me igualmente à imposição de passaportes ou certificados para aceder a serviços, equipamentos ou eventos. Nalguns países onde foram instituídas este tipo de restrições, como a França ou a Itália, têm ocorrido protestos contra aquelas medidas discriminatórias - ver p.ex. aqui ou aqui


P.S. Vale também a pena ler os dois posts anteriores da mesma série (inspirada no pensamento do filósofo René Girard):
P.P.S. Um outro artigo de análise que também defende que os não-vacinados são os 'bodes expiatórios' da narrativa dominante do fascismo sanitário foi escrito por Connor Kelly em Julho (como segmento final de um artigo mais longo em três partes) - excerto:
(...) The unvaccinated are the ‘natural’ scapegoat for this crisis for both the state, and for large sections of the public. Not because they represent physical danger, nor because they are ‘variant factories’ but because they didn’t get with the programme. (The dehumanisation has already begun with such terminology as variant factories!) The truth is that there are millions of unvaccinated people who are healthy, normal people... The existence of healthy unvaccinated people is an affront to the new regime – an impermissible transgression. Their existence, and their defiant posture seems to make a mockery of all that people have suffered through. They remind us that the madness of the last year and a half was based on so many lies, on manufactured fear, on psychological abuse. If society is populated with healthy, normal unvaccinated people then the public might begin to question what the last year and a half was all for. And that would mean deeply questioning themselves, their narratives, their own desires and the nature of the society they inhabit – a traumatic event.

sexta-feira, 11 de junho de 2021

Revolução agrária 4.0 – devastação ambiental e social em curso

O tema da agricultura intensiva surgiu recentemente no radar mediático por via da situação grave que se vive no Sudoeste Alentejano. No entanto, a questão não se limita àquela região e já tem um historial de mais de uma década. Uma reportagem recente (Abr 2021) no canal público de TV, pouco antes do burburinho sobre Odemira, veio pôr o dedo na ferida: A Invasão da Agricultura Insustentável (Linha da Frente, RTP). A peça, da autoria do jornalista Luís Henrique Pereira, mostra exemplos de norte a sul do país - da Cova da Beira ao Algarve, passando inevitavelmente pelo olival (super)intensivo do Baixo Alentejo e as estufas do Sudoeste Alentejano - e dá voz a ambientalistas e movimentos locais que contestam os projectos de agricultura industrial e intensiva que estão a alterar de forma drástica e acelerada a paisagem. Entre os efeitos nefastos da agricultura intensiva, são destacados: a perda de qualidade e erosão dos solos, a perda de biodiversidade, a poluição química dos aquíferos e rios, os perigos para a saúde pública do uso de pesticidas, a desertificação, a escassez de água, além dos impactos nas populações locais e a exploração da mão-de-obra imigrante. Surpreendentemente, a reportagem da RTP dá menos destaque às posições dos produtores e do Governo que, sem surpresa, invocam os aumentos de produtividade e de rendimento daquele tipo de práticas agrícolas, defendendo a sua sustentabilidade. Claro que houve quem não gostasse e acusasse a reportagem de sensacionalismo e de se furtar ao contraditório (p.ex. aqui), motivando mesmo o envio pela CAP de um protesto formal à direcção da RTP (aqui). O recente 'caso Odemira' veio mostrar quem tinha afinal razão.

A expressão que usei no título deste post foi respigada de um artigo de 2019 que descreve a transformação radical na cultura do olival no Baixo Alentejo alimentada pela água do Alqueva e que tenta dar uma visão equilibrada do tema, ouvindo os diferentes agentes envolvidos: governo, autarquia, produtores, académicos e ambientalistas. Embora nunca seja explicado o uso do ‘4.0’ no título, presume-se que terá havido três revoluções agrícolas anteriores (de carácter tecnológico) e há um claro pendor no artigo para as vantagens económicas de curto prazo do modelo agro-industrial, com destaque para a citação de um grande produtor da região que pergunta “Querem ver plantação moderna?”, respondendo: “Venham a Portugal e ao Alentejo” e prometendo: “A revolução não terminou e vai continuar”. Um artigo mais recente no Boletim da Ordem dos Advogados faz uma análise mais serena e apresenta uma lista extensa dos impactos ambientais e sociais nefastos dos regadios intensivos e superintensivos, a médio e longo prazo, propondo a sua limitação e o recurso à ‘agricultura de precisão’ e à agroecologia.

Os sinais de alerta sobre as consequências nefastas da agricultura industrial já vêm desde os anos 60 e 70 do século passado, no rescaldo da chamada ‘revolução verde’ do pós-guerra (ver p.ex. aqui ou aqui), mas a consciencialização e contestação surgiram agora de novo em Portugal perante o crescimento explosivo do olival e amendoal intensivos e superintensivos, em especial no Baixo Alentejo. Os alertas e a contestação têm vindo principalmente de alguns académicos nacionais (p.ex. aqui ou aqui), de ambientalistas (p.ex. aqui), de alguns partidos políticos (p.ex. aqui), mas também de movimentos sociais ou locais, como os movimentos Alentejo Vivo e Juntos pelo Sudoeste ou o colectivo Chão Nosso Alentejo. Destaco ainda um post escrito num tom pessoal e emocional por alguém que analisou e auscultou de perto a realidade daquele território, apelidando-a de ‘genocídio’ e de ‘extermínio do povo alentejano’. No entanto, as vozes críticas não se limitam ao território nacional e um relatório do Tribunal de Contas Europeu de 2018 (referido na reportagem da RTP) alertava para o perigo de desertificação agravado pela agricultura intensiva, criticando as políticas incoerentes e desajustadas para o país, em particular a insistência no regadio num país onde a água vai ser cada vez mais escassa.

O olival (e amendoal) intensivo foi também tema de uma Grande Reportagem emitida pela SIC (Alentejo, Azeite e Água) no mesmo mês do programa da RTP referido no início (é possível assistir à 1ª parte aqui). Aqui são ouvidas as vozes de um leque mais alargado de agentes locais e nacionais, mas também dos habitantes. Um artigo de opinião de um agricultor e silvicultor local em reacção a este programa faz um leitura crítica da palavra sustentabilidade, alertando para as suas diferentes dimensões (económica, social e ambiental), e defende uma abordagem mais equilibrada com recurso a boas práticas agrícolas. Deixo uma citação deste artigo: “Como silvicultor e agricultor, tenho a perfeita consciência do difícil que é, por vezes, colocar todas as variáveis na balança. Temos uma exploração de romãzeiras em regime intensivo e, cada ano que passa, tentamos melhorar as nossas práticas agrícolas. Fizemos a requalificação de linhas de água permanentes e temporárias, instalação de sebes biológicas e zonas de descontinuidade, entre outras medidas. Este tipo de práticas faz cada vez mais sentido e, ao contrário de todas as expectativas, nos últimos três anos deixámos de utilizar inseticidas, simplesmente porque permitimos que todo o ecossistema funcionasse. Na natureza é preciso tempo e paciência, algo que o ser humano tem uma certa dificuldade em compreender.

Termino, invocando as reflexões dos meus últimos posts, assim como a deste outro que escrevi para o blogue do projecto Guarda Rios, com um apelo à sensibilidade de todos os que partilham de uma (est)ética ecológica da atenção e do cuidado no sentido de contribuírem, da forma que puderem, para que possamos recuperar uma sustentabilidade sistémica e duradoura, e para que não prevaleçam as visões daqueles que preferem os benefícios económicos imediatos (que na verdade só chegam a alguns privilegiados) e que defendem a transfiguração paisagística da outrora aridez da ‘planície dourada’ para os actuais 'mantos verdes', mas que, no médio e longo prazo, transformará o Alentejo num deserto infernal.

Nota: à excepção da foto de abertura, todas as restantes foram obtidas por mim durante uma residência do projecto Guarda Rios na região do Alqueva (Aldeia da Luz) em Outubro de 2020.