sexta-feira, 29 de novembro de 2024

Co-criar mundos habitáveis

Encontro Semente, Aldeia do Vale, Maio 2024
(Projecto Casa-Árvore)
Participei recentemente na 4ª conferência internacional de Economia Social e Solidária e Comuns que decorreu no ISCTE/IUL de 13 a 15 Novembro – ver aqui. Durante os três dias da conferência dedicada ao tema “Para além do ‘consenso da descarbonização’: a ética e as práticas de simpoiese”, foram muito diversas as abordagens oferecidas pelos participantes, oriundos principalmente das áreas das ciências sociais e humanidades – ver aqui ou aqui. Já tinha trazido a este blogue o conceito de simpoiese (aqui) e, numa apresentação que fiz durante a conferência, juntei-lhe a abordagem decrescentista para fazer um diagnóstico sistémico da permacrise global (ver aqui) e para apontar possíveis caminhos de transformação social que permitam fazer face aos desafios existenciais que enfrentamos.


Fiz também parte de uma apresentação colectiva do projecto Casa-Árvore (Arte Comunitária e Ecologia), no qual colaboro desde 2020. Essa sessão, a qual intitulámos “Co-criar mundos habitáveis: entretecer práticas artísticas comunitárias e regeneração ecológica”, teve contributos, em registos ora expositivos, ora performativos, de mim próprio, da Graça Corrêa (‘Eco-Empatia: para uma relação co-criativa simpoiética e incorporada com ambientes não humanos’), da Sílvia Floresta (‘Harmonizar as interações humano-natureza: uma abordagem holística ao desenvolvimento comunitário regenerativo’) e do André Fausto, coordenador do projecto (‘Canção de uma árvore’). Para além de convocar o pensamento-sensibilidade ecológico e empático, a sessão convidou também a um estar em relação com os outros, humanos e não-humanos, em particular com as plantas das quais co-dependemos. Para isso, recriámos uma atmosfera informal e acolhedora numa das salas de aula, trazendo para aquele espaço elementos não-humanos, contribuindo assim para que a proposta não fosse meramente conceptual.


O meu contributo – ‘Nutrindo uma ética e estética ecológicas’ – teve como principal inspiração o ensaio-manifesto “How to grow livable worlds: Ten (not-so-easy) steps for life in the Planthroposcene” (2018) da antropóloga cultural canadiana Natasha Myers, que invoquei anteriormente neste blogue (aqui e aqui), e recuperou também ideias de outros autores que tinha introduzido neste meu outro post. Resumidamente, a minha intenção foi mostrar como a visão de mundo dominante originada pelo Iluminismo europeu e baseada nos conceitos equivocados do excepcionalismo humano e do reducionismo mecanicista, está enraizada na nossa desconexão do mundo-mais-do-que-humano. Uma das consequências nefastas desta visão de mundo, intensificada pelo modelo socioeconómico global, ambiental- e socialmente insustentável, é a conversão de vastas áreas do planeta em zonas inabitáveis, quer para seres humanos, quer para muitas outras espécies de animais e de plantas (ver p.ex. aqui ou aqui). A possibilidade de quebrar o ‘feitiço’ (expressão usada por Myers) lançado por aquela visão de mundo requer, não só ir além das racionalizações fragmentadas que construímos através das nossas epistemologias especializadas (biologia, antropologia, sociologia, etc.), mas também promover uma sensibilidade mais profunda e uma reconexão e reencantamento com o mundo não humano. Propus-me convocar ideias e escritos de pensadores sistémicos, tais como Gregory Bateson, David Abram, Sacha Kagan, Natasha Myers ou Donna Haraway, como forma de descolonizar os nossos imaginários antropocêntricos e de resgatar uma ética e estética ecológicas, que, por sua vez, poderão ajudar a promover ecossistemas de práticas ou ações micropolíticas destinadas à co-criação de mundos habitáveis, desiderato que é assumido pelo projecto Casa-Árvore.


Seguem-se os excertos de textos dos diversos autores que escolhi e que li durante a minha intervenção: “Este é um convite para experimentar diversas formas de devir-com e de co-criar o nosso mundo – nutrindo reciprocidades e cumplicidades simpoiéticas.”


(Prólogo) Natasha Myers: “Temos de nos lembrar que estamos a viver sob um feitiço, e esse feitiço está a destruir os nossos mundos. É tempo de lançar outro feitiço, de convocar outros mundos, de conjurar outros mundos neste mundo. É claro que a situação em que nos encontramos agora nos deixa nos limites da linguagem e agarrados às franjas da imaginação. Precisamos de arte, experimentações e perturbações radicais para aprender outras maneiras de ver, sentir e conhecer.”

I. Natasha Myers: “Nós não somos Um”


Gavin Lamb
(daqui): “As histórias culturais dominantes que nos são contadas estão a provocar crises ecológicas, desde as alterações climáticas à extinção de espécies e ao racismo ambiental: a história do crescimento económico sem fim, a história da natureza e das pessoas como recursos a explorar em benefício de poucos, a história dos seres humanos-enquanto-consumidores. Estas histórias – e as histórias superficiais que consideram estas histórias mais profundas como garantidas – precisam de ser eliminadas. Talvez a mais destrutiva seja a história do excepcionalismo humano.”


Val Plumwood
(daqui): “Provavelmente, a característica distintiva da cultura ocidental, e talvez também a principal marca do seu fracasso ecológico, é a ideia de que a humanidade é radicalmente diferente e separada do resto da natureza e dos outros animais. Esta ideia, por vezes chamada de Excepcionalismo Humano, permitiu-nos explorar a natureza e as pessoas de forma mais implacável (alguns diriam de forma mais eficiente) do que outras culturas, e as nossas formas de vida destrutivas e poderosas dominam o planeta. O Excepcionalismo procura um poder ilimitado sobre a natureza, mas, muitas vezes, ter poder não é bom para nós, especialmente se não sabemos realmente o que se passa ou o que mantém tudo unido.”


Sacha Kagan
(daqui): “A crise global de insustentabilidade não é apenas uma crise do hardware da civilização, é também uma crise do software das mentes. A procura de um desenvolvimento mais sustentável no mundo ‘desenvolvido’ tem-se centrado, até agora, demasiado em actualizações de hardware, tais como novas tecnologias, incentivos económicos, políticas e regulamentos, e muito pouco em revisões de software, isto é, em transformações culturais que afectem as nossas formas de conhecer, aprender, valorizar e agir em conjunto. O software cultural é, no entanto, parte da infraestrutura fundamental de uma sociedade, pelo menos tanto como o seu hardware material. Precisamos de uma mudança ambiental-mental [(environ)mental] global, que seja um processo de transformação que afecte as múltiplas relações entre as nossas mentes e os seus ambientes.”

Natasha Myers: “Quem é exatamente aclamado por esse Anthropos, aquela figura posicionada no comando do Antropoceno? A retórica antropocénica designa ‘o Homem’ como o agente da sua própria morte e, simultaneamente, coloca-o na posição de único salvador viável do planeta. (…) Essas narrativas voltam a centrar-se no ser humano em vez de o descentrar como agente do domínio natural sobre o futuro deste planeta.”

II. Natasha Myers: “(…) embora esteja claramente na hora de desmontar a lógica do Antropoceno, não há necessidade de esperar pelo fim deste mundo para começar a conjurar aqueles que podem ser habitáveis.”


Ailton Krenak
(daqui): “Devíamos admitir a natureza como uma imensa multidão de formas, incluindo cada pedaço de nós, que somos parte de tudo: 70% de água e um monte de outros materiais que nos compõem. E nós criamos essa abstração de unidade, o homem como medida das coisas, e saímos por aí atropelando tudo, num convencimento geral até que todos aceitem que existe uma humanidade com a qual se identificam, agindo no mundo à nossa disposição, pegando o que a gente quiser. Esse contato com outra possibilidade implica escutar, sentir, cheirar, inspirar, expirar aquelas camadas do que ficou fora da gente como ‘natureza’, mas que por alguma razão ainda se confunde com ela. Tem alguma coisa dessas camadas que é quase-humana: uma camada identificada por nós que está sumindo, que está sendo exterminada da interface de humanos muito-humanos. Os quase-humanos são milhares de pessoas que insistem em ficar fora dessa dança civilizada, da técnica, do controle do planeta.”


David Abram
(daqui): “(…) a natureza não humana pode ser percebida e experienciada com muito mais intensidade e nuances do que geralmente se reconhece no Ocidente. O que gerou aquela sensibilidade ampliada para a realidade supra-humana, a profunda atenção direcionada às outras espécies e à Terra, que é evidenciada em muitas culturas indígenas? (…) Ou, invertendo a pergunta, o que gerou a sua ausência no Ocidente moderno? Afinal, a cultura ocidental também tem as suas origens indígenas. Se a sintonia relativa com a natureza circundante encontrada em culturas indígenas está ligada a um modo mais primordial e participativo de percepção, então como é que essa reciprocidade sensorial acabou por ficar tão ausente na civilização ocidental? Ou seja, como nos tornámos tão surdos e tão cegos para a existência vital de outras espécies e para as paisagens animadas que elas habitam que agora tão casualmente levamos à destruição?”


Donna Haraway
(daqui): “Talvez, mas apenas talvez, e apenas com um intenso empenho e trabalho colaborativo e brincadeira com outros terranos, será possível o florescimento em ricos agrupamentos multiespécies que incluam pessoas. Chamo a tudo isto Chthuluceno – passado, presente e futuro. (…) Importa que assuntos usamos para pensar outros assuntos; importa que histórias contamos para contar outras histórias; importa que nós dão nós, que pensamentos pensam pensamentos, que descrições descrevem descrições, que laços atam laços. Importa que histórias criam mundos, que mundos criam histórias.”

Sacha Kagan (daqui): “O processo de busca da sustentabilidade obriga-nos a aumentar a nossa sensibilidade para as interdependências nos desenvolvimentos (in)sustentáveis contemporâneos e para as ricas e vitais complexidades da NaturezaCultura. Isto é tanto um imperativo estético como ético. Gregory Bateson definiu a estética como «a sensibilidade ao padrão que liga». Com isto, ele quis dizer uma capacidade de reconhecimento, partilhada não só pelos humanos, mas também por outros seres vivos: Para ele, a estética é aquilo que «responde ao padrão que liga».”


“Uma arte que esteja envolvida no tipo de estética descrita por Bateson pode reengajar-nos numa comunicação mais ampla do que o consciente, reconectando-nos ao nosso conhecimento incorporado e às muitas fontes intuitivas e subconscientes de conhecimento que residem dentro de nós. A estética reflete uma capacidade mental que excede a consciência.”

“A fim de evitar o risco de se tornar uma nova ferramenta de elitismo social, a estética da sustentabilidade não deve ser concebida como uma medida fixa para alguma forma de progresso estético simplificado e excelência estética. Em vez disso, deve permanecer fortemente enraizada e contextualizada nas comunidades de toda a sociedade, com uma ampla diversidade de formas possíveis de realizar uma experiência estética da complexidade.”

III. Natasha Myers: “(…) precisamos de aprender não apenas a colaborar, mas também a conspirar com as plantas, a respirar com elas. Lembrem-se, elas inspiraram-nos a existirmos.”


Emanuele Coccia
(daqui): “Se a vida vegetal é também uma vida cultural, esta pressupõe a atividade de uma mente que se exercita antes de tudo e, quase exclusivamente, na forma do próprio corpo. (…) A alma vegetativa não é a vida sem imagens, sem fantasia, mas a vida na qual a fantasia não é limitada ou reduzida a porções de si ou do mundo, mas refere-se à totalidade de si e à totalidade do mundo. É a fantasia transcendental, o lugar onde a imaginação forma imediatamente o corpo e a matéria é um sonho sem consciência, um sonho sem olhos que não precisa de órgãos nem de sujeitos para ser cumprido. Cada planta parece inventar e abrir um plano de existência no qual não se dá, de facto, oposição entre crescimento e fantasia. (…) existe um cérebro de matéria, uma mente imanente à matéria em cada vivente. A vida não é nada mais que o facto da matéria em si poder tornar-se cérebro, mente. A semente (ou um ovo) não é nada mais que a representação mais banal desta cerebralidade elementar, matérica.”


Joana Cabral Oliveira et al
. (daqui): “As plantas, mil maneiras de escutá-las desde sempre, mas agora sob constrangimentos de vida e morte inéditos em escala e em velocidade. Serão elas um guia para desconfundir o relógio com o tempo, o progresso com o crescimento? (…) Ao modo das plantas, há pressa em vegetar. O que temos nós a aprender com elas? Se nelas enovelados, quem mesmo, doravante, seremos nós? Plantas são trilha e morada de outros seres. Humanos colhem e pássaros bagunçam os frutos. Abelhas fazem festa nas flores. Galhos se comunicam com o vento, raízes com as hifas, sementes pegam carona nos fluxos e asas. Vegetar é crescer em contiguidade com o mundo, coabitar lugares, aderir e fazer espaços, engajar-nos com aquilo que nos circunda – ou, antes, nos atravessa. Criar raiz e lançar sementes. Desterritorializar-se. Propagar, cortar, distribuir, desmembrar-se em qualquer ponto e depois se reconectar. Polinizar, cruzar, misturar, gerar o imprevisível. Brotar na terra, crescer, florescer, frutificar e apodrecer, voltar para a terra. Transformação é o nome do jogo. Vegetar é uma estratégia.”

Natasha Myers: “(…) a Plantropocena [Planthroposcene] é um convite para nos enraizarmos numa maneira de viver a vida que quebraria o quadro lógico do Antropoceno. A Plantropocena reconhece o futuro conjunto e incerto de plantas e povos, e exige que mudemos os termos desse relacionamento para que nos possamos tornar aliados daqueles seres verdes.”

“A vegetalização é possível porque o vosso corpo não termina na pele. Os vossos contornos não são limitados pela aparência física. O vosso imaginário morfológico é fluido e mutável. De facto, os vossos tecidos podem absorver todos os tipos de fantasias. A vossa imaginação gera mais do que meras imagens mentais; o vosso alcance estende-se por todo o sensório.”

“Cultivem modos de atenção que permitam perceber o que importa para as plantas e os seus co-conspiradores. Tornando-se sensores, sintonizem-se com essa ecologia de práticas e praticantes. Sigam o empurrar e puxar, as atrações e repulsões, os acontecimentos tomando forma dentro e ao redor das plantas. Experimentem as maneiras pelas quais as plantas praticam as suas artes no limiar da vida e da morte. Com o tempo, começarão a desafinar o vosso sensório ecológico colonial e novos mundos se abrirão à vossa vista.”


“Na Plantropocena, o imperativo capitalista de fazer crescer as economias será subvertido e suplantado pelo imperativo de dar às plantas o tempo e o espaço de que precisam para crescer, articular livremente as relações com os seus aliados e expressar os seus desejos mais completos. Os seres humanos terão que ceder os seus poderes biopolíticos sobre terras e corpos. Deixaremos de estar no comando.”

“Abram espaço para outras maneiras de conhecer e narrar o mundo dos vivos. Lembrem-se: existem pessoas em todo o mundo que possuem os protocolos, o saber e a responsabilidade de consultar as plantas. Os mundos habitáveis precisam de pessoas que saibam falar com as plantas.”

(Epílogo) Natasha Myers: “Precisamos de aprender a trabalhar com e para as plantas, para que possamos ser nutridos, vestidos, protegidos, agradados e curados - sem destruir a terra. As plantas são as criadoras de mundo a que precisamos prestar atenção se esperamos cultivar mundos habitáveis. E os nossos mundos só serão habitáveis quando as pessoas aprenderem a conspirar com as plantas.”