Tenho estado a (re)publicar aqui os meus escritos do Google+,
que encerrou definitivamente no início deste mês. Comecei por seleccionar
textos relacionados com as questões ambientais, em especial sobre a crise
climática. Faço uma nova pausa para comentar a recente passagem de Al Gore pelo
Porto para participar na conferência ‘
Climate Change Leadership’, promovida
pelo CEO da Taylor’s (Adrian Bridge) e dirigida aos empresários da indústria
vinícola (no ano passado o convidado mediático tinha sido Barack Obama). O
impulso para escrever este ‘post’ veio do
comentário que ouvi na Antena 2 pela
boca da socióloga Luísa Schmidt, na sua rubrica ‘Conta satélite’, em que teceu
rasgados elogios à prestação de Gore naquela conferência e ao seu papel de
divulgador do tema das alterações climáticas e defensor dos valores ambientais.
Antes de prosseguir e para que cada um(a) possa tirar as suas próprias conclusões,
partilho ligações para a intervenção de Gore e para notícias sobre a sua
prestação:
A sua intervenção oscilou entre o tom cordato e elogioso em
relação aos anfitriões lusos e aos esforços nacionais e empresariais na
mitigação das AC (materializados no chamado ‘
Porto Protocol’),
até a um registo teatral exageradamente enfático, num crescendo de dramatismo
quase patético, que usou para confessar a sua frustração perante as
consequências dramáticas da ineficácia da acção política (ou da falta dela) que
vão do aumento das emissões de GEE à crise dos refugiados. Diria que a forma e
conteúdo da alocução de Gore foram no mínimo deslocados perante uma plateia de
empresários bem instalados na vida (os bilhetes para o evento custavam 270€), para os quais as palavras de Gore e o seu registo dramático devem ter tido um
efeito meramente caricato e inofensivo. Opinião diferente teve Luísa Schmidt
que apelidou as mensagens de Gore de profundas, exactas e auspiciosas… Mais
incomodado fiquei com a sua comparação dos alertas de Gore e dos seus apelos à
consciência ambiental com os que o Papa Francisco fez na encíclica ‘
LaudatoSi’. Pareceu-me uma comparação descabida e injusta pois, ao contrário do Papa,
Gore não se atreve a pôr em causa o sistema económico e político que estão na
origem dos graves problemas ambientais. Já Francisco, embora nunca usando as
palavras capitalismo ou neoliberalismo, estabelece uma ligação clara entre a
crise ecológica, a crise social e o modelo de desenvolvimento globalizado de
base tecnocrática, criticando a ‘dívida ecológica’ do Norte em relação ao Sul
global e o consumismo compulsivo estimulado pelo poder económico e apadrinhado pelo
poder político, bem como os chamados ‘mitos da modernidade’ como o
individualismo, o crescimento ilimitado, a competição desenfreada e as leis do
mercado sem regras*.
Não ponho em causa o papel que o ex-vice-presidente dos EUA
teve na chamada de atenção internacional para o problema das alterações
climáticas, em particular a partir do lançamento do famoso documentário ‘An
inconvenient truth’ e do respectivo livro em 2006, nem a sua notável
perseverança e optimismo. Contudo, a par do seu activismo ambiental, Gore tem
mantido ligações com o mundo empresarial e financeiro (também na área das
energias renováveis), para além de ser um entusiasta das soluções tecnológicas para a crise climática e para a transição energética, e um crente nas virtudes do sistema democrático e na racionalidade da sociedade ocidental. O seu mais recente envolvimento na iniciativa ‘
ClimateReality Project’ tornou ainda mais evidente a sua promoção do chamado
‘capitalismo verde’ ou ‘
capitalismo sustentável’. De facto, Gore nunca escondeu
a sua convicção de que a resolução da crise climática pode ser conseguida
dentro do modelo capitalista e de economia de mercado, como se comprova nesta entrevista ao ‘site’ norte-americano Vox:
https://www.vox.com/energy-and-environment/2017/8/11/15943200/al-gore-still-has-faith.
Desconfio que tanto Gore como Schmidt partilham de uma mesma
crença na possibilidade de mitigação da crise climática e ambiental através de reformas
do sistema socio-económico, de soluções tecnológicas para a transição
energética e para captura de carbono, de soluções jurídicas e fiscais para a
redução de emissões, e de uma consciencialização ética do mundo empresarial,
mas sem mudanças drásticas de paradigma ou de modo de vida. Desconfio também que se trata aqui de não querer pôr em causa um sistema em que assentam os seus próprios valores, as instituições das quais dependem e o estilo de vida que levam. Esta postura
contrasta com a de diversos activistas que consideram impossível a resolução da
crise ecológica global no seio do sistema capitalista (p.ex.
Naomi Klein ou
Hervé Kempf) ou que, pelo menos, consideram que o sistema político foi
capturado pelo sistema económico global plutocrático, produtivista e extractivista (p.ex. os movimentos
de contestação ‘Fridays for Future’ ou ‘Extinction Rebellion’).
* Excertos de ‘Laudato Si’: (#56)
“os poderes económicos continuam a justificar o sistema mundial actual, onde
predomina uma especulação e uma busca de receitas financeiras que tendem a
ignorar todo o contexto e os efeitos sobre a dignidade humana e sobre o meio
ambiente.”; (#109) “O paradigma tecnocrático tende a exercer o seu domínio
também sobre a economia e a política. A economia assume todo o desenvolvimento
tecnológico em função do lucro, sem prestar atenção a eventuais consequências
negativas para o ser humano. A finança sufoca a economia real.” (#194) “Um
desenvolvimento tecnológico e económico, que não deixa um mundo melhor e uma
qualidade de vida integralmente superior, não se pode considerar progresso.” (#195)
“O princípio da maximização do lucro, que tende a isolar-se de todas as outras
considerações, é uma distorção conceptual da economia…”