quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

Dois poemas sobre o estado do mundo

Os tempos que atravessamos, adversos e inquietantes a vários níveis (social, ambiental, psicológico, emocional), já o eram antes da entrada em cena da Covid. No entanto, a pandemia veio exacerbar certos processos e revelar outros que tornaram mais evidentes as disfuncionalidades das sociedades em que vivemos (ver p.ex. um post anterior), nomeadamente as formas de governação cada vez mais autoritárias e menos democráticas, e a influência nefasta dos media na decisão política e na manipulação da opinião pública. No que respeita à crise pandémica, sinto que é cada vez mais necessário e urgente denunciar (e resistir) não só a campanha de medo mediática que dura há mais de um ano (ver p.ex. aqui ou aqui), como também a verdadeira pandemia autoritária em curso (ver p.ex. aqui), apelidada por alguns de terror sanitário (ver p.ex. aqui). Não deveríamos tolerar a propaganda permanente que é despejada pelos media (e amplificada pelas redes sociais), sob a aparência de informação. 

Sobre este tema, recomendo o visionamento do recente documentário ‘Ceci n’est pas um complot’ do realizador belga Bernard Crutzen que, sem recorrer a teorias rebuscadas ou a argumentos ideológicos, faz um historial da evolução das narrativas mediáticas na Bélgica, com evidentes paralelismos com o que se passou noutros países: ver aqui ou aqui (versão original em francês; é possível selecionar legendas em inglês ou tradução automática em português).


Serve este preâmbulo como pretexto para partilhar dois poemas separados por três quartos de século, mas que estão claramente em diálogo e nos devolvem um olhar sobre o nosso mundo que só a linguagem poética consegue transmitir. O primeiro é do poeta bretão pouco conhecido (e mal amado)
Armand Robin (1912-1961) e do qual foi recentemente publicada uma tradução em português no número mais recente da revista Flauta de Luz:


O programa em poucos séculos (Le programme en quelques siècles; ‘Les Poèmes Indésirables’, 1945)

Vai suprimir-se a Fé

Em nome da Luz,

Depois suprime-se a luz.

 

Vai suprimir-se a Alma

Em nome da Razão,

Depois suprime-se a razão.

 

Vai suprimir-se a Caridade

Em nome da Justiça,

Depois suprime-se a justiça.

 

Vai suprimir-se o Amor

Em nome da Fraternidade,

Depois suprime-se a fraternidade.

 

Vai suprimir-se o Espírito de Verdade

Em nome do Espírito Crítico,

Depois suprime-se o espírito crítico.

 

Vai suprimir-se o Sentido da Palavra

Em nome do sentido das palavras,

Depois suprime-se o sentido das palavras.

 

Vai suprimir-se o Sublime

Em nome da Arte,

Depois suprime-se a arte.

 

Vão suprimir-se os Escritos

Em nome dos comentários,

Depois suprimem-se os comentários.

 

Vai suprimir-se o Santo

Em nome do Génio,

Depois suprime-se o génio.

 

Vai suprimir-se o Profeta

Em nome do poeta,

Depois suprime-se o poeta.

 

Vão suprimir-se os Homens do Fogo

Em nome dos Esclarecidos,

Depois suprimem-se os esclarecidos.

 

Vai suprimir-se o Espírito

Em nome da Matéria,

Depois suprime-se a matéria.

 

EM NOME DE NADA IRÁ SUPRIMIR-SE O HOMEM;

SUPRIME-SE O NOME DO HOMEM;

DEIXARÁ DE HAVER NOME;

JÁ CÁ ESTAMOS.

O segundo poema parece ter sido inspirado no de Robin e foi publicado em Novembro de 2020 pelo filósofo italiano Giorgio Agamben, uma das vozes que tem colocado em causa, desde o início da pandemia, as narrativas oficiais e mediáticas (ver aqui):


Foi abolido o amor
(Si è abolito l’amore, Nov 2020)

Foi abolido o amor

em nome da saúde

depois será abolida a saúde.

 

Foi abolida a liberdade

em nome da medicina

depois será abolida a medicina.

 

Foi abolido Deus

em nome da razão

depois será abolida a razão.

 

Foi abolido o homem

em nome da vida

depois será abolida a vida.

 

Foi abolida a verdade

em nome da informação

mas não será abolida a informação.

 

Foi abolida a constituição

em nome da emergência

mas não será abolida a emergência.


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