domingo, 28 de fevereiro de 2021

Amor em tempos pandémicos

A relação com os outros e a comunidade sofre um abalo profundo. O laço social, que, mais do que na inveja e no amor-de-si, se enraíza no 'amor' ao outro (como afecto gregário da espécie), encontra-se comprometido, ameaçando romper-se.José Gil (O medo)

As relações amorosas nos últimos anos já vinham a sofrer diversas mudanças, não só por razões de natureza cultural ou social, como também devido ao impacto das novas tecnologias de comunicação, da profusão dos dispositivos electrónicos e das redes sociais. Um ‘cartoon’ do artista Dan Perjovschi ilustra de forma simples parte destas mudanças:
Com a entrada em cena da Covid, novos constrangimentos e desafios surgiram, dando origem a variadas recomendações, guias e folhetos sobre relações e sexo seguro (ver p.ex. aqui ou aqui). A gama de sugestões vai do trivial ou exagerado, ao excêntrico ou mesmo caricato. Seleccionei apenas duas de um guia norte-americano:
- Tu és o teu parceiro sexual mais seguro. O auto-prazer não transmite a Covid-19… (You are your safest sex partner. Self-pleasure will not spread COVID-19…)
- Sê creativo nas posições sexuais e no uso de barreiras físicas, como paredes (sic!), que proporcionam contacto sexual sem exposição cara-a-cara. (Be creative with sexual positions and physical barriers, like walls, that allow sexual contact while preventing close face to face contact)
O humor tem também surgido por via das sugestões mais ridículas, como ilustrado na imagem abaixo ou na recuperação de um clip do filme ‘Demolition man’ de 1993 para ilustrar o tema do sexo na era pós-covid. As consequências mais profundas da pandemia são provavelmente bem mais sérias (vide citação no início do 'post'), mas escolhi limitar-me a uma análise mais leve e superficial - para variar! Voltarei ao meu registo habitual nos próximos 'posts'…


quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

Dois poemas sobre o estado do mundo

Os tempos que atravessamos, adversos e inquietantes a vários níveis (social, ambiental, psicológico, emocional), já o eram antes da entrada em cena da Covid. No entanto, a pandemia veio exacerbar certos processos e revelar outros que tornaram mais evidentes as disfuncionalidades das sociedades em que vivemos (ver p.ex. um post anterior), nomeadamente as formas de governação cada vez mais autoritárias e menos democráticas, e a influência nefasta dos media na decisão política e na manipulação da opinião pública. No que respeita à crise pandémica, sinto que é cada vez mais necessário e urgente denunciar (e resistir) não só a campanha de medo mediática que dura há mais de um ano (ver p.ex. aqui ou aqui), como também a verdadeira pandemia autoritária em curso (ver p.ex. aqui), apelidada por alguns de terror sanitário (ver p.ex. aqui). Não deveríamos tolerar a propaganda permanente que é despejada pelos media (e amplificada pelas redes sociais), sob a aparência de informação. 

Sobre este tema, recomendo o visionamento do recente documentário ‘Ceci n’est pas um complot’ do realizador belga Bernard Crutzen que, sem recorrer a teorias rebuscadas ou a argumentos ideológicos, faz um historial da evolução das narrativas mediáticas na Bélgica, com evidentes paralelismos com o que se passou noutros países: ver aqui ou aqui (versão original em francês; é possível selecionar legendas em inglês ou tradução automática em português).


Serve este preâmbulo como pretexto para partilhar dois poemas separados por três quartos de século, mas que estão claramente em diálogo e nos devolvem um olhar sobre o nosso mundo que só a linguagem poética consegue transmitir. O primeiro é do poeta bretão pouco conhecido (e mal amado)
Armand Robin (1912-1961) e do qual foi recentemente publicada uma tradução em português no número mais recente da revista Flauta de Luz:


O programa em poucos séculos (Le programme en quelques siècles; ‘Les Poèmes Indésirables’, 1945)

Vai suprimir-se a Fé

Em nome da Luz,

Depois suprime-se a luz.

 

Vai suprimir-se a Alma

Em nome da Razão,

Depois suprime-se a razão.

 

Vai suprimir-se a Caridade

Em nome da Justiça,

Depois suprime-se a justiça.

 

Vai suprimir-se o Amor

Em nome da Fraternidade,

Depois suprime-se a fraternidade.

 

Vai suprimir-se o Espírito de Verdade

Em nome do Espírito Crítico,

Depois suprime-se o espírito crítico.

 

Vai suprimir-se o Sentido da Palavra

Em nome do sentido das palavras,

Depois suprime-se o sentido das palavras.

 

Vai suprimir-se o Sublime

Em nome da Arte,

Depois suprime-se a arte.

 

Vão suprimir-se os Escritos

Em nome dos comentários,

Depois suprimem-se os comentários.

 

Vai suprimir-se o Santo

Em nome do Génio,

Depois suprime-se o génio.

 

Vai suprimir-se o Profeta

Em nome do poeta,

Depois suprime-se o poeta.

 

Vão suprimir-se os Homens do Fogo

Em nome dos Esclarecidos,

Depois suprimem-se os esclarecidos.

 

Vai suprimir-se o Espírito

Em nome da Matéria,

Depois suprime-se a matéria.

 

EM NOME DE NADA IRÁ SUPRIMIR-SE O HOMEM;

SUPRIME-SE O NOME DO HOMEM;

DEIXARÁ DE HAVER NOME;

JÁ CÁ ESTAMOS.

O segundo poema parece ter sido inspirado no de Robin e foi publicado em Novembro de 2020 pelo filósofo italiano Giorgio Agamben, uma das vozes que tem colocado em causa, desde o início da pandemia, as narrativas oficiais e mediáticas (ver aqui):


Foi abolido o amor
(Si è abolito l’amore, Nov 2020)

Foi abolido o amor

em nome da saúde

depois será abolida a saúde.

 

Foi abolida a liberdade

em nome da medicina

depois será abolida a medicina.

 

Foi abolido Deus

em nome da razão

depois será abolida a razão.

 

Foi abolido o homem

em nome da vida

depois será abolida a vida.

 

Foi abolida a verdade

em nome da informação

mas não será abolida a informação.

 

Foi abolida a constituição

em nome da emergência

mas não será abolida a emergência.


quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

Húbris by Pfizer

As imagens acima são de uma campanha publicitária da farmacêutica Pfizer (daí o TM associado ao lema) do ano 2020, durante o qual esteve a desenvolver a sua vacina para a Covid-19, e que vinha acompanhada de vídeos a condizer: ver aqui ou aqui.

Quem me conhece sabe que sou um entusiasta da(s) ciência(s) como forma valiosa de conhecimento e de deslumbramento sobre o mundo. No entanto, considero que os conhecimentos alcançados pela ciência não são suficientes para garantir o bem-estar e sustentabilidade das sociedades, e devem ser complementados pelos saberes das outras áreas do conhecimento (artes, humanidades, etc.), assim como pelos saberes vernáculos e pelo senso comum (escrevi sobre isso aqui). O que não me parece definitivamente aceitável é que uma corporação multinacional se apodere do conhecimento científico como sua propriedade, elevando-o ao estatuto de quase-religião. Esta distorção e apropriação da ciência como saber supremo é aliás apanágio dos fundamentalistas do chamado cientismo (ver p.ex. aqui) e tem servido para validar as mais diversas decisões políticas por parte de governantes. É ainda a mesma Pfizer que usa novamente "a ciência" para promover um outro slogan publicitário, ainda mais demagógico:
Muitos cientistas tornaram-se mais cautelosos nas últimas décadas e evitam este tipo de afirmações injustificadas e arrogantes, mas que têm sido igualmente usadas por filantropos menos escrupulosos (que denunciei num post anterior). Estes abusos do marketing agressivo da farmacêutica são agravados pelas notícias sobre os seus ganhos financeiros imediatos ou futuros, incluindo dos seus próprios executivos – ver aqui, aqui e aqui – e que levaram mesmo um jornalista da CNN a interrogar-se: “You thought he [CEO da Pfizer] was in it for saving lives, perhaps?”. Claro que estas alegações são extensíveis às restantes farmacêuticas, que não só receberam milhões de fundos públicos (ver p.ex. aqui) ou incentivos especiais (p.ex. a Operação ‘Warp Speed’ nos EUA) para o desenvolvimento das vacinas, como ainda exigiram protecção legal dos governos em caso de problemas de segurança (ver p.ex. aqui ou aqui). Como é dito no vídeo publicitário da Pfizer, embora sem ironia dissimulada: “When science wins, we all win.”

Notas:

1. Húbris: palavra grega cujo significado original pode ser traduzido como "tudo o que passa da medida; descomedimento" e que actualmente alude a uma confiança excessiva, um orgulho exagerado, presunção, arrogância ou prepotência.

2. Para evitar ser acusado de ‘anti-vaxxer’, faço notar que não ponho em causa a utilidade das vacinas para mitigar uma epidemia viral (a varíola é o exemplo mais óbvio). No entanto, a forma apressada como estas vacinas foram autorizadas e validadas para uso massivo, as disputas e negociatas entre as farmacêuticas e com os estados, e as dúvidas e reservas colocadas por vários cientistas, não me deixam nada tranquilo nem convencido da sua eficácia, ainda para mais num clima de histerismo colectivo e de propaganda mediática que já não era propício à tomada de decisões sensatas e equilibradas.