sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

Crescer até rebentar!?

A mensagem é repetida à exaustão, todos os dias e a toda a hora. A economia tem de crescer, os negócios têm de crescer, o comércio tem de crescer. Tudo tem de crescer. Se não, é a recessão, o desemprego, o colapso social. É uma narrativa tantas vezes repetida que muitos a aceitam como legítima e inquestionável. O crescimento é aliás o mantra da grande maioria dos políticos, governantes e... economistas. E se alguém põe tal 'verdade' em causa, é acusado de radical ou subversivo. Acontece que à luz dos conhecimentos científicos actuais sobre biologia e termodinâmica, o crescimento permanente da economia, que depende do consumo de matérias primas não renováveis e de energia, não é possível num planeta de recursos finitos e onde a conversão energética é um processo irreversível que conduz a perdas inevitáveis. Já escrevi anteriormente sobre o assunto (p.ex. aqui ou aqui) e recomendo esta curta animação que relembra que na natureza nenhum ser vivo cresce para sempre:
'The impossible hamster' (1 min)
O défice epistemológico dos economistas dominantes (adeptos da chamada economia neoclássica e em particular da sua corrente neoliberal) em relação à biologia e à ecologia é realçado pelo geneticista (e activista ambiental) canadiano David Suzuki nestes curtos vídeos onde defende que a economia convencional não é uma ciência mas sim uma ideologia (e uma forma de demência!) e onde mostra as consequências do crescimento exponencial:
'Conventinal economics is a form of brain damage' (2 min)
'On exponential growth' (3 min)
A insustentabilidade e irresponsabilidade deste paradigma económico têm vindo a ser denunciadas há vários anos, em particular pelos defensores do Decrescimentosobre o qual tenho escrito por diversas vezes (p.ex. aqui ou aqui). Vem isto a propósito do lançamento recente do website da Rede para o Decrescimento, da qual sou membro, e onde é possível encontrar informação sobre este movimento internacional que contesta o modelo sócio-económico hegemónico baseado no crescimento permanente da produção e consumo de bens e serviços e na sua mercadorização globalizada. Vão sendo ali também colocadas informações sobre as actividades da Rede, bem como sobre eventos de interesse para a comunidade decrescentista. Convido pois a que façam visitas regulares.

Deixo para finalizar um excerto de um dos textos publicados naquele site:
"Só se compreende a proeminência e a urgência que damos à palavra «decrescimento» se se perceber que uma parte significativa das sociedades humanas percorre hoje um caminho de crescimento sem escalas ou regulações que permitam adequá-lo ao meio ambiente, sem decisão política sobre as transformações que ele transporta consigo e sem um sentido de justiça e dignidade humana que o modele. Transformado em único valor das sociedades modernas, o crescimento tornou-se uma dinâmica vazia de propósito, uma vez que tudo o mais passou a ser-lhe sacrificado. Esta dinâmica passou a justificar tudo e o seu contrário: mesmo no momento em que nos confrontamos com os limites do planeta, o crescimento é ainda convocado para justificar dinâmicas e tecnologias que supostamente nos permitiriam arrepiar caminho e sair da senda do crescimento infinito, que o consenso geral parece agora considerar suicida."

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

A miragem da felicidade: ter vs. ser

Cruzei-me com este artigo recente do pensador britânico Sam Wren-Lewis no website do (estimulante e desafiante) projecto 'Dark Mountain'(*) e apeteceu-me partilhá-lo aqui:
https://dark-mountain.net/the-happiness-problem/
O título do artigo ('The happiness problem') é também o de um seu livro recente e website. Nele o autor discorre sobre o conceito moderno de felicidade e as suas raízes históricas (no Ocidente), estabelecendo o paralelismo com as visões materialistas e mecanicistas do mundo que resultaram da Revolução Industrial. Wren-Lewis problematiza o conceito moderno de felicidade, associado às noções de posse (ter) e de domínio/controlo sobre o mundo, as coisas e os outros, comparando-o com o paradigma de controlo social e tecnológico cujas consequências ambientais e sociais nefastas se tornam cada vez mais evidentes. Sugere como alternativas uma maior abertura para as diferentes dimensões da realidade (corpo, interligações, comunidade, humanidade, natureza) e uma mudança de comprtamento com ênfase no ser e nas relações.
Seguem-se alguns excertos:
"For the past 250 years, we have lived in a society that sees reality in terms of objects and resources, goals and plans, achievements and progress; and less in terms of relationships and subjects, exploration and play, learning and understanding. (…) [After the Industrial Revolution]  Happiness was no longer something that required good fortune. Many individuals could now pursue happiness by satisfying their desires and achieving their goals… [list of things we need to have to be happy] (…) The more we focus on the things we think will make us happy, the less we focus on the other things in life that matter. By focusing on the perfect job, we miss out on other meaningful forms of work (and leisure and rest). In trying to find ‘the one’, we blind ourselves to perfectly good, intimate and trusting relationships with others. In our desire to feel good most of the time, we fail to learn from our negative thoughts and feelings. (…)  When we blind ourselves to what really matters, our pursuit of happiness and social progress has the potential to cause great harm. Our efforts to try and control ourselves, others and the natural environment have not just failed to make us happy – climate change, environmental degradation, increasing economic inequalities and mental health crises are not signs of a happy society – in fact, they are responsible for many of the major social and ecological problems we face today.   (…)  When we open ourselves up to reality, these five things – bodies, relationships, community, humanity and nature – shine with intensity. This may be beautiful for a while, or it might be unbearable. At some point, we will want to shut ourselves off from reality again – create some new goals and plans that will, at least for the time being, make things more manageable. Reality is difficult. Seeing it clearly requires facing up to our limits, our vulnerability and insecurity."


Recomendo ainda um post do mesmo autor onde ele questiona o nexo contemporâneo entre a felicidade e a agenda do bem-estar pessoal, que é promovida em conferências, oficinas e eventos corporativos, mas cujas motivações principais se prendem de facto com os custos das disfunções psicológicas e com a optimização da produtividade. Excerto: "Instead of having a list of things in our head that we think will make us happy, we can be open to all the things outside of our list. Instead of certainty, urgency and blame, we can cultivate attitudes of humility, curiosity and compassion."


Aproveito para partilhar um notável poema inédito da poetisa Sophia de Mello Breyner Andresen (respigado daqui), que me foi dado a conhecer recentemente e que condensa e recapitula algumas das ideias propostas pelo autor britânico, além de se aproximar claramente das visões decrescentistas de frugalidade e simplicidade:

"Dai-me a casa vazia e simples onde a luz é preciosa. Dai-me a beleza intensa e nua do que é frugal. Quero comer devagar e gravemente como aquele que sabe o contorno carnudo e o peso grave das coisas.
Não quero possuir a terra mas ser um com ela. Não quero possuir nem dominar porque quero ser: esta é a necessidade.
Com veemência e fúria defendo a fidelidade ao estar terrestre. O mundo do ter perturba e paralisa e desvia em seus circuitos o estar, o viver, o ser. Dai-me a claridade daquilo que é exactamente o necessário. Dai-me a limpeza de que não haja lucro. Que a vida seja limpa de todo o luxo e de todo o lixo. Chegou o tempo da nova aliança com a vida."

* Para saber mais sobre o projecto 'Dark Mountain' ler por exemplo o seu manifesto fundador: https://dark-mountain.net/about/manifesto/

sábado, 1 de fevereiro de 2020

Reciclar não chega, é preciso reduzir!

Esta é uma das mensagens dos defensores do decrescimento, que propõem não só desafiar a primazia do PIB como principal prioridade política, mas também a redução da produção e consumo para níveis sustentáveis, contraindo o sistema económico para dar mais espaço aos ecossistemas e à cooperação, garantindo uma redistribuição justa de rendimentos e recursos. Um estudo recente apresentado pelo 'think-tank' internacional 'Circle Economy' no WEF em Davos fornece alguns números globais que falam por si:
https://www.theguardian.com/environment/2020/jan/22/worlds-consumption-of-materials-hits-record-100bn-tonnes-a-year
https://jornaleconomico.sapo.pt/noticias/reutilizacao-de-recursos-em-declinio-economia-mundial-e-apenas-86-circular-536007
Das mais de 100 mil milhões de toneladas de recursos (minerais, combustíveis fósseis, metais e biomassa) usados todos os anos em processos produtivos (dados referentes a 2017), 15% são convertidas em emissões de CO2 e outros GEE, 33% são tratadas como resíduos (aterros e depósitos de resíduos), 25% são descartadas para o ambiente (incluindo plástico lançado nos oceanos) e apenas menos de 9% são efectivamente recicladas. Enquanto a quantidade de recursos extraídos mundialmente aumentou 9% de 2015 para 2017, a taxa de reutilização aumentou apenas 3%. Segundo o CEO da 'Circle Economy': "Arriscamos-nos a um desastre global se continuarmos a tratar os recursos do planeta como se fossem ilimitados." O relatório inclui propostas de medidas concretas baseadas no conceito de economia circular.

No entanto, apesar de toda a retórica da desmaterialização da economia, do 'consumo verde' e da implementação de ferramentas de gestão que promovem a economia circular (ver p.ex. aqui), é evidente que o modelo económico actual alicerçado no crescimento não vai conseguir atingir as metas da sustentabilidade. Teremos mesmo de decrescer (economias ricas e privilegiadas) para vivermos melhor e garantirmos um futuro digno para todos. Este será o tema de um encontro no próximo dia 8 Fev em Montemor-o-Novo, promovido pela Rede para o Decrescimento em parceria com duas iniciativas locais: a Cooperativa Integral Minga e a Rede de Cidadania de Montemor - ver aqui.