“A ciência, diz-se agora, é a religião do nosso tempo. Enquanto dantes esperávamos que os sacerdotes nos elucidassem sobre a natureza do cosmos e da existência humana, agora viramo-nos para homens, e por vezes mulheres, de batas brancas.” John Dupré (filósofo da ciência)
“Seria possível descrever tudo cientificamente, mas não faria sentido. Seria uma descrição sem significado - como tentar descrever uma sinfonia de Beethoven como variações de pressão sonora.” Albert Einstein
Nota
prévia: este post foi escrito na
sequência de uma palestra
que dei na Biblioteca de Alcântara a 22 de Novembro, no âmbito do ciclo
Horizontes da Ciência; é possível aceder ao vídeo da palestra nesta ligação.
O
desenvolvimento do ramo do conhecimento humano sobre o mundo que ficou
conhecido como ‘Ciência’* teve o seu momento fundador na Europa entre os
séculos XVI e XVIII num processo que foi apelidado de ‘Revolução Científica’ e
que culminou no Iluminismo europeu. Esse processo coincidiu, por sua vez, com o começo do período designado
por Modernidade, que
se estende até aos dias de hoje. Algumas das personalidades
associadas à génese da chamada 'ciência moderna' incluem o astrónomo florentino Galileo Galilei, o estadista
e filósofo inglês Francis Bacon, o filósofo francês René Descartes e o polímata
inglês Isaac Newton. A Revolução Científica traduziu-se não só numa
amplificação da capacidade de entendimento do mundo natural e no abandono de
certos dogmas religiosos, mas também na construção de uma visão sobre o mundo com
profundos reflexos nas dimensões cultural, social e política das sociedades europeias.
É importante realçar que esse momento de viragem da civilização ocidental e da
sua (nossa) visão de mundo aconteceu em paralelo com a expansão colonial
europeia e com a chamada Revolução Industrial. Essa visão de mundo, que se
tornou então dominante e para a qual também contribuiu o Cristianismo, pode ser
descrita através de termos (conceitos) como racionalismo, materialismo, cartesianismo, mecanicismo, reducionismo (estes cinco
termos estão fortemente correlacionados e são por vezes usados indistintamente),
antropocentrismo (ou
excepcionalismo humano) e utilitarismo (aflorei estes dois conceitos num post anterior ). Estes desenvolvimentos culminaram com o positivismo do século XIX e
mantêm-se ainda hoje no chamado cientismo (ver adiante). Aqueles
aspectos da visão de mundo dominante, aliados à expansão do modelo socioeconómico capitalista/produtivista durante o século XX, têm-se
revelado problemáticas por estarem a conduzir a humanidade a um conjunto de
crises (ambiental, social, económica, cultural), que representam riscos
existenciais dificilmente superáveis (como tenho defendido em vários escritos neste blogue). O papel da Revolução Científica e das
posteriores crises internas da Ciência na evolução da visão de mundo ocidental
e na crise ambiental global foi analisado extensivamente por Miguel Almeida no
seu livro de 2006 “Um planeta ameaçado – a ciência perante o colapso da biosfera”. Recomendo
ainda o visionamento do filme ‘Mindwalk’ (1990) do
realizador Bernt Capra, que questiona a visão ocidental do mundo baseada no
mecanicismo cartesiano e à qual contrapõe a visão holística da teoria de
sistemas complexos, e sobre o qual escrevi este post em 2012.
Não obstante e como referi num post anterior, o conhecimento científico tem desempenhado um papel central no desenvolvimento das sociedades humanas modernas e os avanços nos diferentes ramos da Ciência proporcionaram não só notáveis aumentos do bem-estar e da prosperidade em largas camadas da população, como também feitos tecnológicos extraordinários, e ainda uma quantidade inaudita de conhecimentos sobre os seres humanos, os outros seres vivos, o planeta e o universo. Os sucessos da Ciência como empreendimento humano e fonte de conhecimento, assim como as suas capacidades de previsão e de controlo, enaltecidos pelos positivistas, conferiram-lhe uma aura de objectividade, de veracidade e de infalibilidade que a colocaram numa posição de hegemonia relativamente a outras vias de conhecimento, como as humanidades (e em particular, a filosofia), as artes ou a teologia (ver p.ex. o livro de Miguel Almeida citado acima e o ensaio de Boaventura Sousa Santos citado abaixo). No entanto, vários têm sido os autores (historiadores, sociólogos, filósofos, etc.) que, desde meados do século XIX mas em particular a partir da primeira metade do século XX, vêm questionando esse papel hegemónico do conhecimento científico e o seu equacionamento ao Progresso, alertando para os perigos do seu poder desmedido e da húbris que lhe está muitas vezes associada – nessa lista incluem-se Max Weber, Herbert Marcuse, Martin Heidegger, Bertrand Russell, Hannah Arendt ou Lewis Mumford, entre outros. Muitos daqueles pensadores defenderam também que a prática científica apresenta diversos constrangimentos, vieses e limitações, e que o conhecimento adquirido por esta via revela apenas uma parte da realidade e que, por isso mesmo, conduz a uma visão parcial e redutora do mundo. Uma das questões fulcrais, que tinha sido colocada já no século XVIII pelo filósofo Jean-Jacques Rousseau (citada aqui) e que foi retomada no Grande Debate Nobel de 1991 (citada no texto de Henry W. Kendall incluído nesta colectânea), é a de indagar se o conhecimento científico acumulado se traduziu em sabedoria e verdadeiro progresso, ou seja, se trouxe de facto melhorias significativas do bem-estar e da prosperidade da generalidade da humanidade, assim como para as futuras gerações. O sociólogo Boaventura Sousa Santos fez uma análise crítica do paradigma da ciência moderna e da sua hegemonia duradoura no seu ensaio de 1987 'Um discurso sobre as ciências'.
Por seu lado, a hegemonia do conhecimento científico durante o século XX, amplificada por políticos e media, tem conduzido a uma subalternização ou desvalorização das outras áreas de conhecimento, não só na opinião pública e no discurso político, como mesmo dentro das universidades e instituições científicas. O extremar desta sobrevalorização da Ciência foi apelidado de Cientismo (ou cientifismo; “Scientism” em inglês), termo que foi introduzido com uma conotação negativa, mas que tem sido abraçado por vários cientistas e filósofos que lhe conferem uma acepção positiva – ver p.ex. aqui ou aqui. Esta posição tem sido adoptada também por cientistas e divulgadores de ciência que se auto-intitulam de cépticos (ver p.ex. aqui), muitos deles com um enfoque na denúncia das chamadas ‘pseudociências’. Outros têm focado as suas preocupações nos perigos da iliteracia científica e na descredibilização da Ciência e das instituições científicas na opinião pública. Essas preocupações são legítimas e relevantes, em particular quando se verifica que economistas e políticos não levam em conta o conhecimento científico disponível nas suas tomadas de decisão sobre assuntos de grande impacto social, como por exemplo na mitigação da crise ambiental (escrevi sobre isso aqui). No entanto, o cientismo pode converter-se facilmente em fundamentalismo e autoritarismo quando menospreza ou rejeita outras vias de conhecimento, e quando pretende ignorar os vieses culturais, sociais, económicos ou políticos da prática científica (ver p.ex. aqui).
Aquela atitude tem sido perfilhada em Portugal pelo físico Carlos Fiolhais e pelo comunicador de ciência David Marçal, nas suas diversas investidas mediáticas (jornais, rádios e TV), em particular após o lançamento do seu livro ‘A ciência e os seus inimigos’ (Gradiva, 2017). Leonor Nazaré escreveu então um incisivo artigo de opinião no jornal Público, onde critica a postura dogmática daqueles autores em relação à supremacia da Ciência como via de conhecimento. A forma clara e sucinta como apresenta a sua argumentação constitui a força principal do artigo, denunciando a visão simplista de Fiolhais e Marçal, que colocam no mesmo ‘saco’ da pseudo-ciência as medicinas alternativas, as críticas aos OGM, a homeopatia ou a astrologia. Escrevi anteriormente este post onde procurei desconstruir a atribuição do rótulo de anti-ciência ou de negacionismo aos que se opõem aos OGM. O texto de Leonor Nazaré terá sido muito provavelmente menosprezado pelos visados pois é escrito por uma académica das artes e humanidades - o que acontece também com muitas outras reflexões de filósofos e pensadores das ciências sociais e humanas que têm criticado a atitude fundamentalista do cientismo e a hegemonia da tecnociência.
O caso de Fiolhais e Marçal não é diferente de muitos outros que, no seu papel de evangelistas de uma Ciência que alega ter retirado a humanidade da ignorância, acabam por menosprezar ou vilipendiar outras formas de conhecimento, cuja validade e utilidade devem ser encaradas com sensatez e serenidade, escamoteando o facto de o conhecimento acarretar consigo uma enorme responsabilidade: a de ser transformado em sabedoria de vida e em bem-estar colectivo. Atendendo à gravidade e extensão da confluência de crises que estamos a viver, cujos sintomas são em boa parte consequência das conquistas tecnológicas alicerçadas nas ciências, é evidente que a húbris de muitos cientistas é claramente infundada e descabida. No post que anuncia o livro citado acima, Marçal afirma que “A ciência precisa da liberdade de pensamento que é marca das democracias”. Ora é essa mesma liberdade de pensamento que parece estar ausente da narrativa dos próprios autores, incapazes de um olhar crítico sobre a prática científica. Como escreveu Manuela Soares num comentário ao livro, os autores não se questionam “sobre a ciência vendida ao negócio, sobre a ciência que precisa de ser sustentada pelo lucro, sobre a ciência que não investiga onde não convém investigar, sobre a ciência que só investiga onde já há luz e que por isso só encontra o que quer encontrar”. Tudo isto torna dificilmente defensáveis as visões da Ciência como ‘neutra’, ‘independente’, ‘desinteressada’ e ‘despreocupada’. O professor e cientista português Jorge Calado enumera e analisa no seu livro “Os limites da Ciência” (2014) algumas das limitações, fragilidades e vieses da prática científica.
Um outro autor lusófono que tem uma postura crítica em relação à hegemonia do conhecimento científico e à húbris que lhe está muitas vezes associada é o moçambicano Mia Couto (escritor e biólogo), nomeadamente nos seus perspicazes e bem-humorados ensaios incluídos na colectânea Pensatempos (2005), dos quais transcrevo alguns excertos: “Generalizou-se a ideia de que estamos perto do fim da doença, de que estamos perto da eternidade. Esse anunciar do paraíso só pode ser alimentado pelo pecado da soberba. Nós podemos estar a ser convertidos nos sacerdotes de uma espécie de Igreja universal do Reino da Ciência.” (Os setes pecados de uma ciência pura) “Em nome da ciência se esqueceram outras sabedorias, outras aproximações. A ciência se foi convertendo em algo muito pouco científico, uma acomodada ‘certificação’ daquilo que se pensa ser ‘realidade’. Perdeu-se inquietação, arrojo, e, sobretudo, perdeu-se a disponibilidade para experimentar outras vias de conhecimento.” (Por um mundo escutador) “Há quem acredite que a ciência é um instrumento para governarmos o mundo. Mas eu prefiro ver no conhecimento científico um meio para alcançarmos não domínios mas harmonias. Criarmos linguagens de partilha com os outros, incluindo os seres que acreditamos não terem linguagem. (…) Conhecermos não para sermos donos. Mas para sermos mais companheiros das criaturas vivas e não vivas com quem partilhamos este universo.” (Uma palavra de conselho e um conselho sem palavras)
Finalmente, parece-me muito relevante a ligação que Leonor Nazaré estabeleceu entre o reducionismo tecnocientífico e as narrativas trans-humanistas, como o faz também o filósofo Rob Riemen no seu livro 'O regresso da princesa Europa' (2016), onde escreve a propósito da inevitabilidade do progresso tecnológico: “A civilização é precisamente a capacidade humana de dizer ‘não’ e, parece-me, também podemos dizer ‘não’ à clonagem e àquela horrenda máquina-humana sob a forma do homem singular [anunciado pelos trans-humanistas]. Ainda me parece incrível que os tecno-evangelistas se gabem de estar a dar à humanidade um género de ‘progresso’ eterno e no entanto, assim que as questões éticas surgem, caiam no mais completo determinismo e fatalismo." Aquela visão transpareceu também muito claramente na série documental “2077 - 10 segundos para futuro”, exibida em 2018 pela RTP – ver aqui –, sobre a qual escrevi uma análise crítica no nº5 da revista Flauta de Luz. Termino com um excerto desse meu texto: “Quando se põem em causa as narrativas dos utopistas da tecnociência é comum ouvirem-se acusações de fundamentalismo tecno-pessimista, catastrofista, eco-conservador ou neo-luddita, que ao impedir a liberdade e o progresso da ciência conduziria a um retrocesso civilizacional e à estagnação social. É também usual ouvir invocar que a mudança e o risco são os motores da evolução (…). Nada se pode interpor ao ímpeto imparável do progresso! Mas não se trata de defender uma posição castradora e limitadora da liberdade e curiosidade dos cientistas, nem tão pouco de pôr em causa as virtudes da ciência como forma de conhecimento e de deslumbramento. Trata-se, isso sim, de questionar a recusa obstinada, mas de potenciais consequências desastrosas para a civilização humana, em gerir as consequências éticas e sociais das criações da ciência e da tecnologia, procurando zelar não só pelo bem-estar de todos os membros da sociedade, presentes e vindouros, como também pela sustentabilidade dos diferentes ecossistemas dos quais dependemos. Essa responsabilidade deve ser assumida e transformada numa prática política democrática de gestão dos comuns baseada no cuidado e na prudência.”
* Nota: A palavra Ciência pode ser entendida como o corpo de conhecimento sobre o mundo resultante da prática científica, mas refere-se muitas vezes também ao conjunto de ferramentas utilizadas pelas diferentes áreas científicas para adquirir conhecimento, apelidado mais comummente de método científico. Aqui usá-la-ei no sentido de via de conhecimento, estando implícito que abrange um conjunto de áreas e de práticas científicas que deviam ser mais apropriadamente designadas pelo plural, ciências.