Nota prévia:
inauguro com este post uma nova série de textos mais curtos, que intercalarei
com outros mais extensos, numa tentativa de conferir maior dinamismo a este
blog.
A expressão
anglosaxónica 'speaking truth to power' tem sido muito usada para descrever
acções individuais ou colectivas de contestação ou de desobediência civil
ligadas a diferentes activismos, que vão dos movimentos políticos ou de defesa
dos direitos humanos, aos pacifistas ou aos ambientalistas. Nomes como os de
Nelson Mandela ou de Ghandi são muitas vezes invocados como exemplos dessa
forma de resistência ou de confronto pacífico face aos poderes instalados. No
entanto, a sua origem pode ser atribuída ao conceito grego de 'parrhesia' (parrésia
em PT) – ver p.ex. aqui.
O filósofo Michel Foucault investigou e reflectiu sobre o tema na sua derradeira
série de palestras intitulada «O governo de si e dos outros/A coragem da
verdade» – ver aqui.
Etimologicamente, a palavra significa dizer tudo, mas o seu uso referia-se à
capacidade (e virtude) de falar aberta e francamente, mesmo que isso pudesse ir
contra o senso comum ou causasse incómodo aos outros. Foucault refere que esse
acto pode acarretar um risco para o falante (parresiasta), sendo que "o perigo
vem sempre do facto de que a verdade dita é capaz de ferir ou enfurecer o
interlocutor". Afirma ainda que "Parrhesia
é uma forma de crítica, seja em relação a outro ou em relação a si mesmo, mas
sempre numa situação onde o falante ou confessor está numa posição de
inferioridade em relação ao interlocutor". Foucault resume assim o conceito: "a
parrhesia é uma atividade verbal na
qual um falante expressa a sua relação pessoal com a verdade e arrisca a sua
vida porque reconhece o acto de dizer a verdade como um dever para melhorar ou
ajudar outras pessoas (assim como a si mesmo). Na parrhesia, o falante usa a sua liberdade e escolhe a franqueza ao
invés da persuasão, a verdade ao invés da falsidade ou do silêncio, o risco de
morte ao invés da vida e da segurança, a crítica ao invés da bajulação, e o
dever moral ao invés do interesse próprio e da apatia moral".
É nesta acepção
que invoco aqui o conceito de parrésia para destacar alguns acontecimentos
recentes que me pareceram exemplares. O primeiro refere-se a uma declaração
conjunta de um grupo de oito jovens agrónomos franceses ('Des agros qui
bifurquent'), recém-licenciados pela universidade AgroParisTech, na cerimónia de
entrega de diplomas em Maio deste ano – ver aqui (vídeo; é possível activar
legendas em quatro línguas) e aqui (texto da declaração em FR). A sua postura tranquila, mas determinada,
de quem compreendeu que a universidade onde passaram os últimos anos da sua
formação os preparou para se adaptarem a um sistema ambiental- e socialmente
nocivo, com o qual eles decidiram não compactuar escolhendo outros caminhos, é
absolutamente notável. Recomendo vivamente a leitura da declaração, que faz uma
crítica incisiva do sistema capitalista e tecnocrático vigente, assim como das falsas
alternativas do ‘desenvolvimento sustentável’, do ‘crescimento verde’ ou da ‘transição
ecológica’. A lucidez e a integridade destes verdadeiros parresiastas foram
louvadas por alguns órgãos de comunicação francófonos ou anglófonos (ver aqui ou
aqui),
mas vilipendiadas por muitos outros (predominantemente franceses) que os
acusaram de deserção social, sem dúvida por se sentirem confrontados pela
atitude destemida e claramente contra-hegemónica daqueles jovens (ver p.ex. aqui).
Por cá, nem pio… Surpreendentemente (ou talvez não), a própria universidade emitiu um
comunicado (ver aqui)
elogiando o protesto dos estudantes e aproveitando para se auto-congratular, alegando
que a postura emancipatória daqueles estudantes, mas também a da maioria dos outros
que não tiveram tal ousadia, era uma prova cabal de que a instituição cumprira
a sua missão de dar aos seus formandos competências para escolherem o seu próprio
caminho e para estarem à altura dos desafios e debates da sociedade!
Um outro exemplo
de uma acção parresiástica colectiva dentro de uma universidade aconteceu
quando um grupo de activistas pacifistas (Resist and Abolish the Military Industrial Complex – RAM INC) interrompeu uma aula sobre mudança
climática na Harvard Kennedy School (faculdade da Harvard University) que estava a ser leccionada por uma
executiva (Meghan O’Sullivan) da empresa norteamericana de armamento Raytheon,
denunciando a gigantesca hipocrisia patrocinada pela própria universidade, dado
o reconhecido contributo do complexo-industrial militar para as emissões de
gases com efeito de estufa – ver vídeo comentado aqui e notícia aqui. A Raytheon é uma das quatro
grandes empresas que têm lucrado com as vendas de armas à Ucrânia ou à Arábia
Saudita (ver p.ex. aqui).
Os outros dois
exemplos que seleccionei são de parresiastas que agiram individualmente. O
primeiro refere-se ao depoimento da jovem activista climática britânica Mikaela
Loach que aproveitou um convite para participar num evento patrocindado pela
Fundação Gates - a BMGF Goalkeepers Award Ceremony 2022 – para denunciar o
contributo dos bilionários e do capitalismo para a crise climática, bem como o papel do
filantrocapitalismo no ‘greenwashing’ das suas próprias iniciativas – vídeo aqui e
comentário aqui. O segundo refere-se
a depoimentos recentes da eurodeputada irlandesa Clare Daly em sessões do
Parlamento Europeu, nos quais denunciou a hipocrisia e incitação à guerra por
parte da União Europeia e dos EUA/NATO, que lhe valeram acusações de propagandista
pró-russa e anti-europeísta – ver vídeos aqui
e aqui.
A coragem, a
integridade e a coerência são três das facetas mais notáveis que caracterizam
os parresiastas, conseguindo assim abalar a impunidade dos poderosos e vencer
o conformismo social, inspirando outros a fazer o mesmo – ver p.ex. aqui. Os autores deste artigo, que enaltecem a
parrésia como uma ética radical, afirmam: “Only through the extreme courage to
pursue, continually and not exceptionally, our own and always singular ethos
that gives content to an alternative form of life, outside the laws of
scientific, philosophical and prophetic truths, can we–perhaps–slay the Hydra
of impunity.”
No entanto, a
parrésia não é isenta de perigos, nomeadamente os da apropriação ou
desvirtuação pelo próprio sistema de poder, acabando por servir a sua perpetuação.
Um exemplo recente é o da jovem poetisa afroamericana Amanda Gorman, cuja
eloquência na defesa e na afirmação de comunidades discriminadas ou oprimidas
socialmente lhe valeu rasgados elogios vindos dos sectores mais progressistas
da sociedade norteamericana, tendo sido escolhida para ler um poema seu na
tomada de posse do presidente Biden em 2021 – ver p.ex. aqui
ou aqui.
Apesar da aclamação e celebridade que se seguiram, as suas decisões de dar
corpo a campanhas publicitárias de grandes corporações internacionais ou a
reportagens em revistas de moda valeram-lhe acusações de oportunismo e de
colaboracionismo com o sistema que alega criticar – ver p.ex. aqui
ou aqui.
Em sua defesa, Gorman tem afirmado que tem consciência das potenciais
incoerências da exposição mediática, mas que esta serve a sua causa de lutar
contra a injustiça social e que tenciona mesmo candidatar-se à presidência dos
EUA. Há quem desconfie que a sua ousadia se terá transmutado em deslumbramento
e hubris. Uma outra aclamada escritora de origem nigeriana – Chimamanda Adichie
– cuja obra celebra o poder das histórias na afirmação e emancipação social das
mulheres africanas, foi recentemente convidada para a mesma cerimónia a que me
referi acima a propósito da jovem parresiasta Mikaela Loach. Só que na conversa
que teve com a bilionária Melinda Gates (ver aqui), não se vislumbra uma atitude
parresiástica; antes pelo contrário, fiquei boquiaberto ao ouvir a escritora elogiar as
iniciativas da Fundação Gates nos países mais pobres em todo o mundo, incluindo
a África. A incoerência é tão gritante que tenho de dar razão ao discurso
radical de Onyesonwu Chatoyer no artigo citado acima, no qual faz uma crítica devastadora a várias mulheres de
origem africana (incluindo Gorman) cuja ascensão a lugares de poder ou de
visibilidade na sociedade norteamericana não tem afinal confrontado ou posto em
causa o sistema supremacista, imperialista e neocolonialista dos EUA.
P.S. Após publicação deste post recebi uma amável resposta de uma leitora que partilhou um escrito de 2013 sobre o mesmo tópico (invocando a personagem parresiástica de Casy no filme 'As vinhas da ira' de John Ford), do qual extraí a seguinte frase: "O parrésico não diz em nome de Deus, da sabedoria ou da técnica. Diz em nome de um ethos, a sua relação com a verdade é fundamental e dizê-la é um dever perante os outros [e, acrescento eu, em particular, perante o poder opressivo e desumanizante] e perante si próprio."
P.P.S. Já tinha escrito anteriormente (aqui e aqui) sobre outros casos de parresiastas que sofreram consequências mais gravosas pelos seus actos corajosos de defesa da liberdade de informação ou de expressão, ou de defesa dos seus territórios e modos de vida.