terça-feira, 30 de novembro de 2021

Bem vindos ao Metaverso – alienação 3.0

O metaverso chegou e até o Facebook já mudou de nome (mas não de ramo de negócio) para se adaptar à nova realidade... virtual (ler aqui ou aqui). Será um mundo de avatares e de aparências, pronto a consumir e a gastar dinheiro... virtual? O Second Life (ainda se lembram?) foi um mero ensaio que surgiu talvez antes do tempo, mas terá servido para treinar alguns dos aspirantes a avatares dos novos mundos virtuais. Na versão portuguesa da entrada da Wikipedia sobre metaverso pode ler-se:Acreditando que o metaverso é o futuro da internet e tecnologia, Mark Zuckerberg, CEO do Facebook, mudou em 2021 o nome de sua empresa para Meta Platforms Inc., ou Meta. Ele diz que a empresa irá abranger tudo o que eles acreditam, focando na construção do metaverso.Acreditar é claramente uma palavra-chave (que já fazia parte do glossário do ‘empreendedorês’). A Microsoft também não podia ficar de fora desta promissora e ‘disruptiva’ inovação tecnológica e já lançou uma parceria com a Accenture para criar escritórios virtuais – projecto Nth Floor.

No vídeo de apresentação do ‘facelift’ do FB (que alguns apelidam de manobra publicitária, por surgir convenientemente numa altura em que o nome da corporação andava nas bocas do mundo por razões menos positivas), o seu CEO surge, ele próprio com um aspecto sinistro de avatar (com um sorriso e gestos forçados de ciborgue misantrópico), a louvar as fascinantes possibilidades do admirável mundo novo virtual. Uma agência de promoção turística islandesa (Inspired by Iceland) não deixou escapar a oportunidade de parodiar aquele vídeo, lançando a sua própria versão recheada de humor escandinavo – ver aqui.

O metaverso integra-se no processo mais alargado da chamada ‘transição digital’, fortemente intensificado com a crise pandémica. Trata-se de mais uma patranha da BigTech para aumentar o seu volume de negócio e o seu poder, promovendo o ‘outsourcing’ de uma aspiração humana que durante séculos era praticada por cada pessoa através da sua própria imaginação, de meditação ou de oração. Mas as consequências mais alarmantes, para além do poder acrescido de controlo e manipulação entregue a grandes corporações, são o aprofundamento da desconexão entre os seres humanos e o mundo natural, bem como a erosão das nossas capacidades de resistir à alienação e de criar as nossas próprias realidades (ler p.ex. aqui ou aquiou ver este vídeo).

Num cândido artigo de opinião no site da SIC-N o autor escreve: “Quando pensamos nas controvérsias que envolvem hoje o Facebook, ficamos apreensivos com a ideia de que o interesse económico dos seus acionistas nem sempre estará alinhado com a utilização de todo este poder a favor do bem. Mas vamos acreditar que seremos capazes de aproveitar tudo o que esta nova internet irá potenciar e limitar os seus eventuais efeitos negativos.” Acreditar, uma vez mais. Na benevolência dum gigante da BigTech? É como acreditar no Pai Natal – ou até em Deus…

Curiosamente (ou talvez não) soube-se este ano que o mesmo FB se propõe fortalecer e alargar as parcerias com diversas igrejas, em particular com várias congregações evangélicas nos EUA (ler p.ex. aqui). Num artigo de opinião no ‘The NY Times’ (é possível ler o artigo na íntegra aqui), a sua autora escreve: “(…) after the coronavirus pandemic pushed religious groups to explore new ways to operate, Facebook sees even greater strategic opportunity to draw highly engaged users onto its platform. The company aims to become the virtual home for religious community, and wants churches, mosques, synagogues and others to embed their religious life into its platform, from hosting worship services and socializing more casually to soliciting money. (…)  The partnerships reveal how Big Tech and religion are converging far beyond simply moving services to the internet. Facebook is shaping the future of religious experience itself, as it has done for political and social life.Trata-se portanto de juntar duas abordagens à evangelização, de natureza diferente, mas alegadamente complementares e com potencial de se fortalecerem mutuamente. Num aparente deslize registado pela jornalista, um pastor de Atlanta justificou a sua parceria com o FB como tendo o objectivo de: “directly impact and help churches navigate and reach the consumer better.” “Consumer isn’t the right word,” he said, correcting himself. “Reach the parishioner better.”

A palavra metaverso foi alegadamente cunhada em 1992 pelo escritor de ficção científica Neal Stephenson na sua novela ciberpunk ‘Snow Crash’. O autor do artigo do ‘The Conversation’ citado acima alerta: “Stephenson’s original vision of the metaverse was very exciting, but also full of possibilities for both online and real world harms, from addiction, to criminality, to the erosion of democratic institutions. Interestingly, Stephenson’s metaverse was mostly owned by big corporations, with governments relegated to being largely insignificant paper-shuffling outposts. Given the current tensions between big tech and governments around the world over privacy, freedom of speech and online harms, we should seriously consider what kind of metaverse we want to create, and who gets to create, own and regulate it.

Vamos querer embarcar em mais esta sedutora aventura tecnológica acreditando na alegada benevolência das grandes corporações que a querem providenciar e vender?


Nota final: usei no título a expressão ‘alienação 3.0’ para enfatizar que já tínhamos experimentado vagas anteriores de outras formas de alienação, que vão desde as formas de escapismo mais convencionais – recorrendo p.ex. a álcool, drogas ou outros estupefacientes (1.0) -, até às ferramentas mais sofisticadas introduzidas no século XX por via de diversas tecnologias – mass media, marketing e tecnologias digitais de 1ª geração (2.0).

segunda-feira, 22 de novembro de 2021

Resistir à sexta-feira negra

Aproxima-se mais uma ‘Black Friday’ (BF) alimentada pela habitual propaganda agressiva e pelo vício do consumismo, que nem a pandemia atenuou - ver p. ex. meu post de 2019. Esse post inclui o link para um video que explica a origem da BF, assim como os seus impactos ambientais e sociais, propondo formas de lhe resistir. Este ano, o mesmo autor do vídeo anterior, fez um outro sobre o decrescimento como caminho alternativo para superar o consumismo - do qual depende o actual sistema capitalista, que apregoa o 'crescimento verde' como alegada solução para a sua própria insustentabilidade.


O sobreconsumo, no caso da moda ('fast fashion'), gera toneladas de roupa rejeitada - incluindo roupa usada que foi doada! - e que se acumula em países do sul global (África, Ásia e América do Sul) – ver p.ex. este vídeo. No deserto do Atacama há agora autênticos montes de roupa que não é reciclada - ver notícias recentes com imagens impressionantes aqui ou aqui, ou ainda este vídeo.


Como escrevi no post de 2019, a escolha também é nossa já que podemos sempre dizer não e aderir ao ‘Dia Mundial sem Compras’ ou ‘Buy Nothing Day’. O site Adbusters propõs este ano uma nova campanha - #TrueCost - para incluir os custos ambientais nos preços dos produtos comerciais, reorientando assim o consumo e gerando fundos que poderão depois ser redistribuídos de forma justa e democrática.

sexta-feira, 12 de novembro de 2021

Catástrofe climática em curso - nem resignação, nem salvação!

“Each day brings a new pledge that looks like progress. But none are legally binding, few have stood up to scrutiny, and many offer so much wiggle room as to be meaningless.” Newsletter de Novembro do movimento Extinction Rebellion

Decorre até dia 12 Nov em Glasgow mais uma cimeira das Nações Unidas dedicada à crise climática (COP26, sarcasticamente apelidada de FLOP26), adiada para este ano devido à pandemia (ver p.ex. aqui ou aqui). Tendo em conta o insucesso das 25 cimeiras anteriores na mitigação daquele que é frequentemente considerado como o desafio existencial mais premente que a humanidade enfrenta, os prognósticos de analistas, jornalistas e ambientalistas para esta não foram animadores (p.ex. aqui ou aqui), apesar dos apelos dramáticos ou sensacionalistas de figuras políticas (ver p.ex. aqui ou aqui). Desde a aprovação do ‘Acordo de Paris’ em 2015, os governos dos diferentes países tentam, sem êxito, negociar as estratégias concertadas e os meios necessários para cumprir as metas de redução de emissões (ver p.ex. aqui). No entanto, como continuam a tentar fazê-lo sem mudar o paradigma económico global e sem integrar as outras dimensões interligadas da crise ecológica - a extinção de biodiversidade, a destruição de ecossistemas, a sobre-exploração de recursos, a desflorestação, a degradação e empobrecimento de solos agrícolas, etc. -, é natural que as emissões tenham continuado a aumentar, apesar de uma ligeira redução durante o ano 2020 devido às medidas de mitigação da pandemia da Covid-19 (ver p.ex. aqui). A queda momentânea das emissões durante esse ano foi aliás uma consequência das quebras na actividade económica em vários países, o que demonstra a forte correlação existente entre o volume de emissões e o tipo de actividade económica dependente do comércio internacional e da movimentação permanente de pessoas e bens (ver p.ex. aqui).
Apesar dos sucessivos relatórios e avisos de cientistas mundiais (p.ex. aqui ou aqui) ou dos protestos dos jovens e de muitos outros cidadãos (ver p.ex. aqui ou aqui), os decisores políticos - subservientes aos interesses económicos instalados - não tiveram a intenção ou a ousadia de tomar as medidas radicais e incómodas que seriam necessárias (ver p.ex. aqui ou aqui). Não admira pois que os níveis de frustração e desânimo, expressos por exemplo no tão falado fenómeno da eco-ansiedade, tenham vindo a aumentar, em particular entre as camadas mais jovens da população (ver p.ex. aqui ou aqui).
Como alegadas alternativas ao modelo dominante têm surgido propostas baseadas em estratégias radicais de conservação da natureza, mas que são acusadas de elitismo por beneficiarem os interesses instalados e desprezarem os direitos dos povos indígenas (ver p.ex. aqui). Por outro lado, temos as narrativas tecno-optimistas que propõem soluções essencialmente tecnológicas para a crise climática. Transição energética, tecnologias ‘limpas’, economia ‘verde’, ‘pactos verdes’ – são meras ilusões ou aparências de mudança pois não põem em causa a essência do sistema (em particular, o crescimento permanente, a acumulação, o extractivismo, o produtivismo ou o consumismo), nem a visão de mundo dominante (que privilegia a separação, o egoísmo, a competição, a dominação, o materialismo, o mecanicismo). Acresce que essa visão de mundo, assim como os modos de vida consumistas dos cidadãos privilegiados, principalmente do norte global, foram estimulados por décadas de propaganda pelo marketing, pelos media e pelos poderes económico e político, claramente os grandes beneficiários do ‘business as usual’. Parte desta argumentação é comum a uma tomada de posição recente da Rede para o Decrescimento – ver aqui.
Proponho duas leituras adicionais que discorrem sobre as dimensões emocionais e psicológicas das nossas atitudes perante a crise climática e ecológica (escrevi anteriormente sobre este assunto aqui). A primeira é um texto de Samuel Alexander que se interroga sobre as noções de normalidade e de sanidade numa sociedade ecocida que parece ter perdido a consciência da sua própria insanidade. Seguem alguns excertos:
If profits and economic growth are the benchmarks of success in a society, it simply may not be profitable to expose a society as insane, and even members of an insane society may sooner choose wilful blindness than look too deeply into the subconscious of their own culture.
The world we live in should not be treated as normal, and it should not be a sign of good health to become “well adjusted” to a society that is casually practising ecocide, celebrating narcissism, institutionalising racism and assessing the value of all things according to the cold logic of profit maximisation.
We must not assume behaviour that makes an individual “functional” within a sick society is sufficient evidence of their sanity. In such a society, it is okay not to feel okay, to cry and feel grief, to feel dread and alienation. In our tears, let us find solidarity, for we are not alone.
A outra leitura que recomendo é de um artigo de Deanna K. Kreisel onde a autora se interroga sobre as razões que levam algumas pessoas a adoptar estados de espírito que ela apelida de ‘fugitive melancholy’ e ‘soft negation’ como contraponto ao ‘hard denial’ dos tecno-utopistas que se refugiam nas soluções tecnológicas salvíficas. Ficam alguns excertos:
The melancholy we feel at the prospect of our own deaths is indeed a species of envy, at least of the near future: of those who will witness the outcome of current events. As we grow older we fall prey to a frustrated desire for narrative closure, knowing that we will not get to see how everything turns out. Fugitive melancholy might help us understand our mass resistance to meaningful action on climate change. Unconscious resentment at the thought of our own deaths leads to an inability to fully imagine—or care for—the world after we are gone.
Technology advocates like Elon Musk and Bill Gates, who stake our future on “green” energy and geo-engineering, seem like pie-eyed idealists chasing after a gossamer dream—and that dream is that everything essentially stay just as it is. Those who are resigned, mourning, circumspect in their expectations are the ones who advocate a radical change in how we orient ourselves both to our attenuated future and to our planetary home.
As a middle-class, middle-aged, medium-optimistic person, I personally feel like I’m caught on a sandbar between the two tides, one rushing in and one ebbing away: the Boomers who are giving up because they’ve already sucked the marrow from the planet and are tossing away the bone, the Gen Zers and younger filled with energy and rage.