segunda-feira, 31 de maio de 2021

Ervas daninhas e plantas ruderais – amor à segunda vista

Na sequência do post anterior, debruço-me mais uma vez sobre a nossa percepção do mundo-mais-do-que-humano onde estamos inseridos, em particular uma das suas componentes mais diversa e omnipresente: as plantas. Se o nosso contacto e conhecimento das outras espécies animais se tem vindo a perder, nomeadamente para os habitantes dos meios urbanos, o afastamento e desconhecimento em relação às plantas tende a ser ainda maior – apesar de quase toda gente apreciar um passeio num jardim ou num bosque – e é agravado pelo reduzido destaque que lhes é dado nos media e nas escolas. Aquele desconhecimento ou mesmo desinteresse têm vindo a ser reconhecidos e até já lhes foi dada uma designação: ‘plant blindness’, que se pode traduzir por cegueira botânica ou indiferença às plantas – ver p.ex. aqui ou aqui. Esta situação tem diversas causas, que vão desde um instinto inato em dar mais atenção aos animais por serem organismos vivos com os quais temos maior afinidade ou a desconsiderarmos as plantas por serem hierarquicamente inferiores (zoocentrismo), até a factores culturais, como a falta de contacto e conhecimento directo das plantas ou a prevalência de ideias distorcidas sobre a sua utilidade (ver p.ex. aqui). As consequências são igualmente diversas, incluindo a incapacidade de reconhecer as diferentes espécies vegetais ou de as reduzir a categorias genéricas como ‘arvoredo’, ‘mato’ ou ‘erva’, mas também a negligência mais profunda que está na base da perda de biodiversidade e da destruição de ecossistemas, em particular, a desflorestação (ver p.ex. aqui).

Embora muitas pessoas reconheçam a importância das plantas pela sua utilidade para os próprios seres humanos - como fonte de alimento, de fibras ou de fármacos, pelo seu contributo para a depuração do ar ou da água e para a criação de solos férteis, e, mais recentemente, por serem um importante veiculo de sequestração de CO2 -, alguns grupos vegetais são desconsiderados ou mesmo eliminados activamente por serem vistos como prejudiciais – em particular, as espécies invasoras (com boas razões) ou as chamadas ‘ervas daninhas’ (nem tanto). No caso destas últimas, há uma vez mais uma distorção em relação à sua relevância, pois é bem sabido que as plantas espontâneas, que surgem quer nos campos, quer nas cidades, têm papéis muito importantes na regeneração dos solos e na criação de condições adequadas para outras plantas ou de alimento para animais, em particular, os insectos. Algumas espontâneas são até comestíveis e outras têm propriedades medicinais (ver p.ex. aqui) – dou aqui apenas um exemplo, cujo nome vulgar faz juz às suas propriedades: amor-de-hortelão.
Faço notar que existem aliás diversas iniciativas para preservar ou até incentivar as plantas espontâneas, quer a nível nacional (ver p.ex. aqui ou aqui), quer internacional (p.ex. aqui). Lamentavelmente, há muitas autarquias que não aderem a estas boas práticas e continuam a dizimar as plantas dos passeios, dos baldios ou das bermas, usando roçadoras ou herbicidas. Em compensação, surgiram nos últimos anos iniciativas de botânicos ou de cidadãos entusiastas que se dedicam a identificar e assinalar nos pavimentos de vilas e cidades aquelas plantas, num movimento que se tornou viral nalgumas localidades europeias, tomando diversas designações: Sauvages de ma rue’, ‘More than weeds’, ‘Rebel botanists’ – ver aqui, aqui, aqui ou aqui.

Há um grupo particular de plantas espontâneas que surgem em ambientes urbanos ou antropizados (modificados por acção humana), cuja designação revela mais uma vez o desprezo a que são votadas – as plantas ruderais. Estas plantas são comuns, por exemplo, em terrenos abandonados designados por baldios - uma outra palavra cuja conotação negativa impede leituras mais positivas desses territórios (ver p.ex. aqul). Um dos vídeos do projecto ‘Segredos da natureza’ – um ‘microsite’ criado para a Culturgest pela historiadora portuguesa Teresa Castro – é dedicado às plantas ruderais (ver aqui). Talvez o seu visionamento faça algumas pessoas mudar de opinião sobre estas plantas pioneiras. Basta aliás um olhar mais atento e uma sensibilidade mais apurada para encontrá-las pelas ruas da cidade e quiçá tomar-lhes o gosto e apreciar o seu encanto singelo (ver p.ex. aqui ou aqui).

As imagens deste post foram respigadas durantes as deambulações e os pousios na zona oriental de Lisboa com @s fiador@s do c.e.m-centro em movimento, entre Abril e Junho de 2020 - práticas documentadas aqui.

terça-feira, 25 de maio de 2021

O que faz um ser sensível é a sensibilidade

No passado dia 22 Maio celebrou-se o Dia Internacional da Biodiversidade, uma data que nos apela a reflectir sobre a nossa relação com o mundo-mais-do-que-humano. Essa relação está claramente em crise dado o afastamento crescente entre nós (populações predominantemente urbanas) e os restantes seres vivos, promovido por uma visão eminentemente antropocêntrica, utilitarista e imediatista do mundo que nos levou a explorar, dominar e destruir os ecossistemas - dos quais fazemos parte e dos quais dependemos (ver p.ex. aqui ou aqui). Para reverter esse processo será necessário estimular um melhor conhecimento do mundo não humano, que está geralmente mais próximo do que imaginamos e sem o qual não será possível desenvolver um desejo de cuidar, defender ou regenerar – ou seja, amar – todo esse universo de outros seres cuja existência é tão vital, legítima e sagrada quanto a nossa.

Com o intuito de re-activar aquela relação, apelando aos sentidos e à sensibilidade, orientei uma caminhada sensorial no Parque Florestal de Monsanto focada na escuta-olhar atento e demorado, nas sensações do corpo e nos sentidos além da visão, mas estimulando também o intelecto, numa fusão integrativa de cabeça, coração e sentidos (que, como bem sabemos, nunca estão separados). O percurso foi pontuado pela leitura de excertos de poemas ou textos de Alberto Caeiro, Manuel Zimbro e Mia Couto, aos quais junto mais dois – um de David Abram e outro de Rachel Carson – reunidos neste post.


Alberto Caeiro – O Guardador de Rebanhos
 
Poema IX
 
Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.
Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.
 
Por isso quando num dia de calor
Me sinto triste de gozá-lo tanto,
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz.
 
Poema II
 
O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...
 
Creio no Mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...
O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo…
 
Poema XLVII
 
Num dia excessivamente nítido,
Dia em que dava a vontade de ter trabalhado muito
Para nele não trabalhar nada,
Entrevi, como uma estrada por entre as árvores,
O que talvez seja o Grande Segredo,
Aquele Grande Mistério de que os poetas falsos falam.
Vi que não há Natureza,
Que Natureza não existe,
Que há montes, vales, planícies,
Que há árvores, flores, ervas,
Que há rios e pedras,
Mas que não há um todo a que isso pertença,
Que um conjunto real e verdadeiro
É uma doença das nossas ideias.
A Natureza é partes sem um todo.
Isto é talvez o tal mistério de que falam.
Foi isto o que sem pensar nem parar,
Acertei que devia ser a verdade
Que todos andam a achar e que não acham,
E que só eu, porque a não fui achar, achei.

 
Manuel Zimbro – História secreta da aviação
 
O que faz um ser sensível é a sensibilidade
só a sensibilidade pode cuidar e responder adequadamente à vida, à ordem,
ao mundo,
a coisas tão importantes como por exemplo a natureza,
isso que é inteligência sem causa, em equilíbrio…
(…)
a sensibilidade é doutra dimensão
é ela, o hífen, que liga as mãos-cérebro-coração no nascente acto de fazer,
ou de não-fazer.
vemos a sua presença e também vemos a sua ausência no que o homem deixa feito,
esteja ou não concluído.
aqui, para tentar vê-la na sua mais elevada expressão – no equilíbrio –
ligá-la-emos ao acto de voar.
 
(…)
quem considera olha atentamente e quem olha atentamente vê,
não de uma maneira especial, ou desta ou daquela maneira, vê simplesmente
sem pensar – que já viu, que está a ver ou que irá ver – vê em silêncio…
(…) onde o olhar que nada foca, nada fixa, nada concentra
resplandece em todas as direcções, como a luz do sol.
quando o pensamento está calado e no seu lugar adequado, não há separação entre o que
considera e o que é considerado,
vê-se a partir do vazio o vazio.
só há a visão que flui.
tal é a natureza da consideração que constantemente põe à prova e faz escoar a extraordinária energia contida naquilo que estrutura as nossas visões do mundo.
só a consideração modera as fixações.
considerar não é pois das palavras.
 
(…)
se o homem se desloca na água - nada - porque não se deslocará no ar?
por ser mais anfíbio que aéreo?
mesmo se a água está fria, ele despe-se para nadar,
porque teria, para voar, de vestir qualquer coisa, que o iria tornar ainda mais pesado?
sem imitar os peixes, é-lhe possível usar as mãos como barbatanas,
porque será que ainda não chegou a compreender o pleno uso das mãos?
ou será que por estar tão carregado de lastro (sempre com o cérebro ocupadíssimo…) já não tem mãos a medir?
O que de resto lhe propicia ‘voos’ cada vez mais requintados,
à medida que se lhe vai adormentando a sensibilidade, que é muito mais leve que o ar.
 
(…)
como para o ser humano descolar as duas solas do solo é uma coisa e
deslocá-las
enquanto as mantém descoladas outra,
passamos a distinguir os dois conceitos, voar e levantar voo…
(…) para as descolar,
tarefa relativamente arriscada,
torna-se necessário esvaziar o espírito
despir a mente de todas as espécies de roupagens, sejam atraentes ou não.
como se tratasse de despir a roupa para se lançar à água, que, uma vez encharcada,
é lastro que faz afogar.
para haver elevação tem de haver essa nudez, é ela a mente nua que
assinala a necessária
leveza - despi-la, é esse o risco.
 
(…)
para se deslocar no ar,
a operação é em si menos complicada e mais corriqueira, mas torna-se mais
complexa dado que,
tanto o sentido (horizontal) como o impulso (exterior) só são possíveis
graças à sustentação de um movimento colectivo,
da comunidade onde se insere o que se elevou.
ou seja, o homem nunca poderá voar pelos seus próprios meios, precisará sempre da
sustentação do seu semelhante.
se precisou dele para aprender a andar, para aprender a falar, etc., porque não precisaria dela
para se deslocar no ar, ainda por cima sendo mais pesado que ele?
depois de singularmente se ter elevado, voar é um trabalho de conjunto que necessita do
apoio do mundo, isento de fricções e atritos dada a fluidez do meio.
só graças à confiança mútua, ao equilíbrio, à harmonia e à conivência de toda
a colectividade,
ele poderá procurar-se a necessária energia para se mover no espaço sem apoio material.
 
(…)
foi-nos ensinado a andar, a falar, a escrever...
e, ensinaram-nos a pensar.
(…) aprendemos tudo isso, mas não foi em conjunto, foi com esforço, com imenso desperdício de energia, (…) o que aprendemos não foi, nem é, livre nem fácil,
se fosse,
se fosse de facto em conjunto, a energia, a compreensão teriam uma
amplitude tal que com pouco esforço, ou seja, imensa beleza
já teria havido espaço para até nos terem ensinado a voar.
mas as prioridades desta sociedade são de outra ordem…


Mia Couto – Os sete pecados de uma ciência pura
 
(…) Deixámos de escutar as vozes que são diferentes, os silêncios que são diversos. E deixámos de escutar não porque nos rodeasse o silêncio. Ficámos surdos pelo excesso de palavras, ficámos autistas pelo excesso de informação. A natureza converteu-se em retórica, num emblema, num anúncio de televisão. Falamos dela, não a vivemos. A natureza, ela própria, tem que voltar a nascer. E quando voltar a nascer teremos que aceitar que a nossa natureza humana é não ter natureza nenhuma. Ou que, se calhar, fomos feitos para ter todas as naturezas.
 
David Abram – Ecologia em profundidade (‘Depth ecology’)
 
(…) Ao contrário da altura de uma montanha, e da largura ou amplitude de um vale, a profundidade de uma paisagem depende inteiramente de onde nos encontramos dentro dessa paisagem. E à medida que avançamos, corporalmente, dentro dessa paisagem, a profundidade da paisagem muda à nossa volta. Em rigor, um espaço tem profundidade apenas se nos situarmos algures dentro desse espaço. (...) na verdade, apenas experimentamos o mundo real a partir da nossa perspectiva corpórea, com as duas pernas firmemente inseridas no coração das coisas. Uma vez que estamos inteiramente dentro deste mundo terreno, a natureza pode revelar-nos certos aspectos de si própria, apenas se esconder outros aspectos; nós nunca apreendemos um qualquer fenómeno terreno na sua totalidade nem de uma só vez.


Rachel Carson – Maravilhar-se (‘The sense of wonder’)
 
(…) O mundo da criança é cheio de frescura, de novidade, de beleza, povoado de maravilhas e entusiasmo. É uma pena que, para a maioria de nós, essa visão de olhar límpido, esse verdadeiro instinto que inclina ao belo e inspira temor e respeito, se esbata e mesmo se perca antes de chegarmos à idade adulta. Se eu tivesse alguma influência sobre a fada boa que se julga presidir ao batismo de todas as crianças, pediria que o seu presente para qualquer criança que viesse ao mundo fosse uma capacidade de maravilhamento tão indestrutível que duraria toda a vida, como antídoto infalível contra o aborrecimento e o desencanto da idade adulta, as preocupações estéreis com as coisas artificiais, o alheamento que nos afasta das fontes da nossa força.
Para que uma criança mantenha vivo o seu sentido inato do que é maravilhoso sem que lhe tenha sido dado tal presente pelas fadas, ela necessita da companhia de pelo menos um adulto com quem possa partilhá-lo, redescobrindo com ele a alegria, o entusiasmo e o mistério do mundo em que vivemos.