A velha Europa tem vindo a revelar a sua decadência e o seu desnorte - em particular, os seus ‘líderes’ e decisores políticos, principalmente ao nível da União Europeia (UE) e da Comissão Europeia (CE). Para além do fanatismo belicista, alimentado pela diabolização da Rússia e do seu líder, e da defesa cobarde do estado sionista de Israel, que denunciei em escritos anteriores (aqui e aqui), tomadas de posição ou decisões recentes ao nível da UE ou da CE sobre liberdade de expressão e de informação, assim como sobre comércio e produção alimentar e agrícola, comprovam que a Europa se encontra em pleno retrocesso civilizacional. Aquelas tomadas de posição ou decisões, não só põem em causa os tão apregoados valores da liberdade, da democracia e dos direitos humanos, que a UE alega defender, como também vão contra a sua agenda de defesa ambiental, em particular o Pacto Ecológico Europeu (European Green Deal), uma das bandeiras da actual CE, além de colocarem os interesses do poder militar, económico e financeiro à frente dos direitos e aspirações dos seus próprios cidadãos.
A governação tecnocrática e centralizada da UE, permitida pelo Tratado de Lisboa, tem vindo a acumular tiques de autoritarismo e de desrespeito pelos direitos e pela diversidade de sensibilidades dos cidadãos europeus. Como veremos, a UE não está apenas a trair pontualmente valores e princípios; está a normalizar uma lógica de excepção permanente — securitária, económica e geopolítica — que corrói, de dentro para fora, os princípios que diz defender: liberdade de expressão, direitos humanos, transparência democrática e proteção ambiental. Ou seja, a UE não está a errar aqui e ali, mas está a substituir valores por gestão de riscos e interesses.
Mas vamos por partes.
A intensificação da narrativa da guerra 'inevitável' e 'justa' contra a Rússia tornou-se ainda mais evidente com a mediação de belicistas fanáticos e russófobos como Mark Rutte (ver aqui) ou Kaja Kallas (ver aqui). As iniciativas da administração Trump, que tem menosprezado o papel da UE nas negociações de paz entre a Ucrânia e a Rússia, provocaram grande irritação nos dirigentes europeus que continuam apostados no aumento das despesas militares e na retórica da ameaça russa, desdenhando a procura de uma solução diplomática - ver p.ex. aqui ou aqui. No entanto e como argumenta Pedro Ponte e Sousa num artigo de opinião, um eventual desfecho das negociações favorável à Rússia era expectável e mostra a irracionalidade da postura belicista europeia: “O plano de paz para a Ucrânia que agora se desenha não é uma novidade, mas sim a materialização tardia de inevitabilidades que vimos tentando explicar há vários anos. Confirma, de forma inequívoca, que não haveria solução militar para este conflito e que, quanto mais o mesmo se arrastasse, mais provável seria que a Ucrânia ficasse exposta: a negociar de uma posição de fragilidade, ou sem capacidade negocial de todo, cenário que Zelensky reconheceu esta semana. A solução passaria, como sempre se antecipou, essencialmente por um entendimento entre os principais actores do conflito: os EUA e a Rússia. A Europa, por sua vez, cada vez mais apostada em converter-se num actor militar, fica a assistir ao processo negocial em casa, sem nele participar ou ter voz. Prende-se, assim, a uma dinâmica de Guerra Fria 2.0 que ela própria incentivou e da qual não consegue sair, por incapacidade das suas lideranças e falta de visão estratégica.” Ponte e Sousa reforça que a situação em que a Europa se encontra agora é da responsabilidade da actual liderança da UE e é calamitosa para o seu futuro: “A União Europeia, sob a liderança de Ursula von der Leyen e de alguns estados com crescente influência, viu na guerra uma oportunidade para institucionalizar políticas e práticas que já vinham a ganhar tração. Esta estratégia levou a um triplo tiro no pé: 1) A militarização da Europa, com a Europa a gastar hoje mais do dobro em guerra do que há dez anos; 2) O fim da diplomacia como ferramenta central, crescentemente desvalorizada pelos estados e pelas instituições da UE, cada vez mais investidas numa corrida ao hard power e esquecendo o longo sucesso das diplomacias europeias, mesmo com exíguos recursos; 3) O declínio da UE comercial, em que a via de corte total de relações com a Rússia amputou o poderio económico e comercial – a verdadeira fonte de peso e influência da UE.”
Posições igualmente críticas sobre as políticas europeias e, em particular, sobre a postura do governo alemão liderado por Merz, foram também veiculadas por Jeffrey Sachs e por Conor Gallagher, o primeiro numa carta aberta dirigida ao chanceler alemão e o segundo num artigo de opinião para a revista Naked Capitalism. Ambos criticam os líderes europeus por sacrificar a economia europeia e o bem-estar social dos seus cidadãos, cedendo aos interesses económicos e às ambições imperialistas norte-americanas e à sua postura de confrontação com a Rússia e a China. Ugo Bardi vai mais longe na sua análise da actual postura belicista europeia face à Rússia e defende que esta se baseia numa tentativa desesperada de salvar o alegado motor da sua economia, isto é a Alemanha, mas que aquela tentativa está condenada ao fracasso e poderá de facto conduzir ao colapso económico e social da Europa.
No capítulo da liberdade de expressão e de informação, destaco duas situações preocupantes. Por um lado, a restrição de acesso a documentos da UE ao abrigo de um conjunto de regulamentação relativa à segurança de informação e ciber-segurança (Infosec), denunciada pelo site de investigação jornalística independente ‘Follow The Money’. No seu boletim informativo de Dezembro, referem que, alegando a necessidade de regras mais apertadas para proteger a UE de ameaças híbridas, a CE pretende um regime de classificação unificado que espelhe a prática interna restritiva do Conselho Euroepu, onde até os documentos banais são frequentemente carimbados como “limitados”. A adopção das novas medidas irá na prática impedir o acesso aos documentos da UE por parte de jornalistas e eurodeputados, o que irá distorcer ainda mais os mecanismos de escrutínio que sustentam qualquer democracia funcional, acabando por criar as bases para alargar o fosso entre o interesse público e os interesses instalados das grandes empresas.
A outra situação refere-se à imposição de sanções extra-judiciais pela UE, como medida coerciva dirigida a pessoas ou entidades, incluindo cidadãos europeus, por porem alegadamente em causa a segurança e os valores da UE, e por difundirem (des)informação anti-ucraniana ou pró-russa - ver aqui. Aquelas sanções, que incluem o congelamento total de bens e contas bancárias, a proibição de auferir rendimentos e a restrição da liberdade de circulação no seio da UE, surgem na senda de iniciativas mais abrangentes lançadas pela presidente da CE, eufemisticamente designadas por ‘European Democracy Shield’ e ‘European Centre for Democratic Resilience’. Estas iniciativas têm sido fortemente criticadas por serem repletas de retórica, mas carecerem de acções concretas, baseando-se principalmente em medidas não vinculativas e dando ênfase excessiva às ameaças externas, ao mesmo tempo que negligenciam os desafios democráticos internos, além de promoverem a censura – ver aqui ou aqui. Quantos às sanções, que se estendem agora a cidadãos europeus, várias vozes se têm insurgido contra a sua alegada ilegalidade e por considerarem que põem em causa a liberdade de expressão – ver aqui ou aqui (neste vídeo, Pascal Lottaz menciona os casos do cidadão suíço Jacques Baud, da activista africana e cidadã suíça Nathalie Yamb e do jornalista alemão Huseyin Dogru). No primeiro artigo, Binoy Kampmark refere-se às acusações mútuas de hostilidade à liberdade de expressão entre os EUA e a UE, denunciando a duplicidade de critérios e hipocrisia da UE por se insurgir contra as recentes sanções decretadas pelo governo dos EUA contra cidadãos europeus, quando tem aplicado medidas equivalentes aos seus cidadãos por exprimirem opiniões contrárias às suas posições sobre questões de política externa: “A 23 de dezembro, o Departamento de Estado norte-americano anunciou a proibição de entrada nos EUA de cinco cidadãos europeus acusados de liderar esforços para pressionar os gigantes tecnológicos norte-americanos a censurar ou suprimir as opiniões americanas. Esta medida surge após a própria União Europeia se ter decidido a sancionar indivíduos acusados de disseminar desinformação russa, particularmente sobre a guerra na Ucrânia.”
A académica macedónia Biljana Vankovska, especialista em ciência política e relações internacionais, escreveu, por sua vez, um artigo de opinião onde emprega os adjectivos orwelliano e kafkiano para descrever as iniciativas recentes da CE (como o Democracy Shield ou as sanções) com vista a controlar a disseminação de informação sobre questões sensíveis na Europa, acusando-a de criminalizar a dissidência sob o pretexto da segurança. Vankovska escreve: “Actos como «espalhar desinformação» ou promover «narrativas pró-Rússia» tornam-se motivos para punição – não porque sejam crimes, mas porque são considerados inconvenientes. (...) Infelizmente, isto não é novidade. Lembremo-nos de Julian Assange, preso por expor crimes de guerra. Ou, mais recentemente, do juiz francês do TPI, Nicolas Guillou, sancionado pelos EUA por emitir mandatos de captura contra líderes israelitas por causa de Gaza. Como salientou Varoufakis, a Europa falhou na defesa dos seus próprios cidadãos. Anteriormente, a Alemanha tinha proibido Varoufakis de falar sobre genocídio; ameaças semelhantes visam funcionários da ONU como Francesca Albanese. A UE, sob Kallas, não resistiu a esta tendência; pelo contrário, refinou-a, sancionando os seus próprios cidadãos juntamente com russos e ucranianos. Antes, gozámos com Kiev por compilar listas negras «pró-Rússia». Agora, a UE ‘ucranizou-se’, adoptando e melhorando estas mesmas práticas.” Sobre as sanções, a autora escreve: “Imagine ser impedido de aceder à sua própria conta bancária, impossibilitado de trabalhar, abandonado onde quer que esteja quando a ordem for emitida. Parece realmente assustador! Orwell tinha uma palavra para estas pessoas: ‘não-pessoa’ [unperson]. Isto é especialmente chocante, considerando a auto-imagem da UE como uma «comunidade baseada em valores», exportadora de democracia e do Estado de direito. Como chegámos ao ponto em que os intelectuais críticos são tratados como ameaças à segurança?”
No domínio da regulação ambiental, alimentar e agrícola, as notícias não são melhores. O boletim informativo de 18 de Dezembro do site francês Reporterre, de informação sobre temas ambientais, faz uma súmula das várias decisões recentes da UE que representam uma clara cedência aos interesses das multinacionais agro-alimentares em detrimento do bem-estar, saúde e prosperidade dos cidadãos, em geral, e dos agricultores, em particular, além de contradizerem os princípios de proteção ambiental apregoados pela própria UE, em particular o Pacto Ecológico Europeu e as medidas em prol da biodiversidade. Temos por um lado, o pacote legislativo ‘food and feed safety omnibus’ (Pacote Omnibus) que pretende ‘aligeirar’ e ‘simplificar’ a regulação ambiental e de pesticidas – ver aqui ou aqui. Segundo a notícia do Público, “O pacote, que terá de ser aprovado pelo Conselho da União Europeia e pelo Parlamento Europeu, é apresentado no mesmo dia em que se soube que a União Europeia deverá continuar a não cumprir a maioria dos objectivos ambientais para 2030, de acordo com um relatório da Agência Europeia do Ambiente”. Este pacote legislativo tem sido fortemente contestado por várias organizações ambientais – ver notícia do Público já citada, aqui e aqui. Segundo aquela notícia: “A organização ambientalista WWF faz um alerta sobre o novo pacote de simplificação das regras ambientais proposto nesta quarta-feira pela Comissão Europeia, defendendo que põe em risco a qualidade do ar, da água e da saúde pública em nome da competitividade. Também o European Environmental Bureau (EEB), a maior rede europeia de organizações de defesa do ambiente, chamou a atenção para as consequências das propostas para simplificar a legislação ambiental, que, diz, minam leis cruciais que protegem a saúde das pessoas, a natureza e a prosperidade a longo prazo. (…) Os ambientalistas defendem que, entre outros problemas, a proposta da CE elimina a exigência de serem avaliados substitutos mais seguros para produtos químicos, dá carta-branca a indústrias para continuarem com práticas comerciais inadequadas e revoga a única base de dados que contém informação sobre produtos químicos fabricados e importados. (…) O pacote Omnibus, alerta o EEB, insere-se numa tendência política mais vasta e preocupante: «Um ataque coordenado às leis que salvaguardam a saúde, o clima e a natureza da Europa, numa pressão de desregulação que troca o interesse público a longo prazo pela conveniência política a curto prazo.»” Já para a organização Pesticide Action Network (PAN-Europe): “A proposta mina o principal objectivo do regulamento, que é o de garantir um elevado nível de proteção com base no princípio da precaução. Se implementadas na sua forma actual, as alterações representariam um sério retrocesso para a regulamentação dos pesticidas na UE, podendo permitir que substâncias perigosas continuem a ser utilizadas indefinidamente. Além disso, contrariariam as constantes e antigas reivindicações dos cidadãos por uma regulamentação mais rigorosa dos pesticidas e pela eliminação gradual dos pesticidas sintéticos.” (daqui) Também um grupo de cientistas de renome de vários países contestou as alterações legislativas incluídas do pacote Omnibus e apelou à CE para que melhore a protecção do ambiente, da biodiversidade e da saúde dos cidadãos contra os pesticidas nocivos, numa carta enviada aos 27 Comissários da UE, assinada por 203 especialistas em saúde, toxicologia e ecologia – ver aqui. Os cientistas apelam à Comissão para que abandone a ideia de enfraquecer a regulamentação dos pesticidas e que, em vez disso, melhore a implementação da regulamentação actual e elimine as lacunas existentes. É possível apoiar uma campanha da WeMove-Europe de contestação à Lei Omnibus aqui.
O segundo pacote legislativo da UE refere-se à (des)regulamentação de produtos agrícolas e alimentares resultantes da aplicação de novas técnicas genómicas (NGTs) – os chamados novos OGMs – alegando que irá ajudar os agricultores a lidar com a crise climática e melhorar a eficiência e a segurança alimentar – ver aqui ou aqui. Segundo esta última notícia, “De acordo com a legislação actual, os novos OGM estão sujeitos às mesmas regras de rotulagem, rastreabilidade e avaliação de riscos que os OGM. Agora, no entanto, foi proposta uma desregulação para isentar as culturas NGT (com excepção das sementes e do material reprodutivo vegetal) daquelas regras. A categoria NGT1, que compreende produtos de laboratório obtidos através de técnicas de edição genética de precisão que actuam como tesouras moleculares para modificar características específicas do DNA já presentes na planta, estaria isenta. Entretanto, os produtos NGT2 — aqueles que diferem da planta-mãe por mais de 20 modificações genéticas e que têm efeitos insecticidas conhecidos e tolerância a herbicidas — continuarão sujeitos a regulamentação. (…) Estas regras serão aplicadas tanto às plantas de origem da UE como às plantas importadas, enquanto as NGT serão proibidas na agricultura biológica: a presença tecnicamente inevitável de plantas NGT1 não constituirá incumprimento para os produtos biológicos. Os Estados-Membros poderão decidir se limitam ou proíbem as NGT2.” Estas alterações têm também sido fortemente contestadas por diversas ONGs ambientais como a Friends of the Earth Europe FOEE (aqui), a Slow Food (aqui) ou a Navdanya International (aqui). Para a FOEE, “Se este acordo se tornar lei, os novos OGM deixarão de estar sujeitos à Diretiva da UE sobre Responsabilidade Ambiental nem aos regimes nacionais de responsabilidade aplicáveis aos produtores de culturas geneticamente modificadas. Caso sejam detetados danos ‘não premeditados’, as empresas responsáveis pela comercialização de OGM não poderão ser responsabilizadas. A FFOE denuncia esta eliminação radical das salvaguardas, uma carta branca concedida à indústria biotecnológica, e apela aos ministros e eurodeputados para que rejeitem esta lei nas suas próximas votações no Conselho e no Plenário da UE.” Já a Navdanya adverte que: “O acordo provisório em trílogo [Parlamento Europeu, Conselho Europeu e CE] sobre os OGM da próxima geração e as Novas Técnicas Genómicas (NGTs) cria uma distinção artificial entre as categorias de NGTs, permitindo que muitos destes organismos sejam tratados como ‘equivalentes’ às plantas convencionais — contornando, na prática, anos de salvaguardas de precaução. Esta mudança, impulsionada pela pressão do lobby do agronegócio, gerou uma ampla oposição em toda a Europa. As redes de agricultores, os grupos de consumidores e os movimentos pela soberania alimentar manifestaram-se, exigindo transparência, liberdade de escolha e pleno respeito pelo princípio da precaução.” (daqui).
O outro retrocesso legislativo refere-se ao acordo obtido no Concelho da UE para alterar duas leis com uma relação muito próxima: a Directiva do Reporte de Sustentabilidade das Empresas (CSRD, sigla em inglês) e a Directiva do Dever de Diligência das Empresas em Matéria de Sustentabilidade (CSDDD) – ver aqui. Apresentado como um passo determinante para o ‘aumento da competitividade’ e para a ‘redução de custos’ pelas empresas europeias, o acordo acaba por isentar mais de 80% dessas empresas de obrigações de reporte ambiental. Segundo a notícia do Público, ambas as Directivas tinham sido alvo de fortes pressões de grandes empresas internacionais e de governos, como os dos Estados Unidos e do Qatar, e o acordo agora alcançado terá como consequência que “Mais de 80% das empresas europeias ficarão isentas de verificar se ao longo da sua cadeia de valor são reduzidos ou eliminados os efeitos adversos na natureza, no clima e nos direitos humanos”. Ainda segundo a mesma notícia, “Na versão originalmente aprovada em 2022, estas directivas aplicavam-se a empresas europeias ou com actividade na União Europeia com um volume de negócios acima de 150 milhões de euros. Mas, agora, só grandes empresas, com mais de 5000 trabalhadores e um volume de negócios anual acima de 1500 milhões de euros terá de cumprir o dever de diligência ao longo da sua cadeia de produção. E só as empresas com mais de mil trabalhadores e um volume de negócios superior a 450 milhões terão a obrigação de informar sobre a sustentabilidade da sua actividade.” A mesma notícia refere ainda que: “No final de Novembro, a Provedora de Justiça da UE, Teresa Anjinho, acusou a Comissão Europeia de má administração, por não respeitar as suas próprias regras na elaboração das propostas legislativas conhecidas como pacotes de simplificação Omnibus, consideradas urgentes, e que abrangem áreas sensíveis como as obrigações de reporte de sustentabilidade das empresas, a agricultura e o tráfico de migrantes. É no âmbito destes pacotes Omnibus que a UE está a fazer estas simplificações, que os críticos consideram esvaziamentos da legislação ambiental.” Em Fevereiro, a European Coalition for Corporate Justice (ECCJ) tinha já contestado o processo de desenvolvimento daquelas propostas pela CE, denunciando que: “O pacote Omnibus é uma recompensa para os interesses corporativos que se esquivam à responsabilidade. Cortar nos direitos humanos e nas protecções ambientais sob o pretexto da ‘simplificação’ alimenta a impunidade, é um livre-trânsito para explorar os trabalhadores, destruir os ecossistemas e silenciar as comunidades que se opõem a estes esforços.” (daqui) A directora da ECCJ, Nele Meyer, declarou na altura: “Recusamo-nos a deixar que os interesses corporativos reescrevam a lei sem a nossa participação. Os trabalhadores e as comunidades mais afetadas lutaram por estas regulamentações de sustentabilidade da UE para evitar danos, mas são as gigantes dos combustíveis fósseis e os lobistas corporativos que agora estão no comando. A Lei Omnibus trai as pessoas e a natureza que a UE prometeu proteger. A Comissão tem de decidir: está do lado das pessoas e do planeta, ou do lado dos interesses corporativos?”
Finalmente, temos o (não)desfecho atribulado das negociações do tratado de comércio entre a UE e o Mercosul, que duram há mais de 25 anos e enfrentam forte contestação dos agricultores europeus – ver aqui ou aqui. Na verdade, a ratificação do acordo, que estava agendada para o mês de Dezembro, foi adiada para Janeiro – ver aqui. Segundo a notícia do Público, a contestação dos agricultores (que se estende também a alterações à Política Agrícola Comum), deve-se a receios de que “um dos principais efeitos do acordo seja uma inundação do mercado europeu com produtos agrícolas e pecuários provenientes da América do Sul, pondo em causa toda a produção europeia”. No entanto, estão também em causa não só interesses do agro-negócio sul-americano, como ainda salvaguardas impostas pelos países europeus. Num artigo para o diário espanhol Público, Miguel Urbán disseca algumas destas questões. Urbán começa por caracterizar assim o tratado: “Um acordo no qual a UE visa melhorar o acesso ao mercado para as suas multinacionais dos sectores automóvel, de peças automóveis, de energia, farmacêutico, de bebidas e de serviços financeiros no Mercosul, enquanto os países do Mercosul obterão maior acesso ao mercado europeu para as suas matérias-primas — carne de bovino e de frango, soja, açúcar e etanol para biocombustíveis, entre outras. Este acordo comercial, popularmente conhecido por «vacas por carros», embora institucionalize uma relação comercial assimétrica e neocolonial, favorece os interesses do poderoso sector agroindustrial do Mercosul.” Urbán recorda que: “A relutância de alguns Estados-membros obrigou à negociação de uma série de cláusulas de salvaguarda, mecanismos que surgem com formulações voluntárias («deviam», «vão esforçar-se») e sem instrumentos vinculativos eficazes. Na prática, estas cláusulas subordinam as boas intenções relativas ao clima e aos direitos laborais às obrigações comerciais vinculativas contidas no acordo. Trata-se de um verniz discursivo típico do soft power europeu, concebido para apresentar o acordo como um exemplo de relações comerciais que respeitam o ambiente e os direitos humanos. Estas cláusulas já tinham sido criticadas pelo próprio Lula como um mecanismo de ‘neocolonialismo verde’ que, sob o pretexto de proteger o ambiente, «impõe barreiras comerciais e medidas discriminatórias, e desconsidera os marcos regulatórios e as políticas nacionais». Assim, as tensões geradas no bloco Mercosul pelo constante fluxo de objecções europeias tornavam-se publicamente evidentes.” Urbán realça ainda que: “as ‘cláusulas de salvaguarda’ foram incorporadas não só, supostamente, para proteger o ambiente, mas também como forma de a Comissão Europeia tentar conter a agitação em torno dos protestos agrícolas que, nos últimos anos, paralisaram repetidamente a capital europeia com os seus tractores. No entanto, como denuncia a Coordenadora Europeia da Via Campesina, estas alegadas cláusulas de salvaguarda «são concebidas para que nunca sejam acionadas. Baseadas em limiares económicos arbitrários, não refletem a diversidade da agricultura europeia nem os efeitos reais e localizados do aumento das importações»”. Para saber mais detalhes sobre o tratado UE-Mercosul e as razões legítimas para a contestação, ver página informativa no site da Plataforma Troca.
Neste post que já vai longo, tentei demonstrar com exemplos muito recentes que, na Europa, a retórica dos valores choca de frente com a prática do poder: numa UE que se apresenta como bastião da democracia liberal, da paz, dos direitos humanos e da transição verde, há um desfasamento crescente entre discurso e prática. Pela relevância e abrangência dos casos que apresentei, parece-me que fica claro que o que está em causa não é uma crise pontual, mas um padrão de retrocesso civilizacional. Por um lado, a construção discursiva de uma guerra “inevitável” com a Rússia reduz o debate público e leva à demonização da dissidência como “pró-russa” ou “ameaça à segurança”, numa lógica maniqueísta que substitui a análise política e a contextualização histórica. A principal consequência é uma política externa que se transforma em dogma moral, imune à crítica. E quando a guerra se torna o eixo central da identidade política, todas as outras liberdades passam a ser condicionais. Com as restrições de acesso à informação e as sanções contra cidadãos europeus por opiniões políticas, a liberdade de expressão deixa de ser um direito universal e passa a ser permitida desde que não contrarie a narrativa oficial. A UE escolhe assim punir opiniões, não actos, aproximando-se portanto mais de regimes que afirma combater do que dos seus próprios ideais fundadores.
Quanto à tão apregoada transição verde e à proteção ambiental, parecem reduzir-se cada vez mais a meras estratégias de marketing e de ‘greenwashing’, onde as políticas da UE se rendem a um alegado pragmatismo económico, recorrendo aos eufemismos da ‘competitividade’ e da ‘simplificação’, como vimos com os exemplos do aligeiramento da regulação ambiental e de pesticidas da Lei Omnibus, a desregulação dos NGTs, as isenções de reporte ambiental e o acordo com o Mercosul. A proteção ambiental deixa de ser um princípio e passa a ser negociável. A Europa pode não ter abandonado o discurso ecológico, mas abandonou a coerência em matéria de qualidade ambiental e de saúde pública face à pressão dos interesses instalados do grande poder económico.
Em todas as dimensões e casos aflorados existem padrões que se repetem: redução do debate democrático, transferência de decisões para instâncias tecnocráticas e justificação constante pela ‘necessidade’, ‘urgência’, ‘segurança’ ou ‘competitividade’. Os cidadãos são tratados como riscos a gerir, não como sujeitos políticos, os direitos e os compromissos são transformados em concessões revogáveis e a qualidade ambiental em mera retórica que se sacrifica aos ditames dos lobbies económicos. Esta Europa poderia até ganhar eficiência, alinhamento geopolítico ou competitividade, mas paga com empobrecimento democrático, erosão da confiança pública e perda de autoridade moral, quer internamente, quer mundialmente.
Fecho com um excerto do artigo de Biljana Vankovska que citei: “Lecionei um curso universitário sobre o sistema político europeu e sempre entendi a UE por aquilo que ela realmente é: um projecto corporativo-colonial-imperialista disfarçado pela retórica da paz e da justiça. Não porque seja particularmente inteligente, mas porque conservei a liberdade infantil de declarar: o rei vai nu.”









