Félix Vallotton (1896) |
“(…) o direito à preguiça, o direito a esquivar-se ao trabalho, o direito a não nos sujeitarmos à mobilização cega, à exigência de nos tornarmos activos, seguem a tradição da luta que no passado resultou na invenção do nosso mundo e que será essencial no futuro, se este futuro vê como crucial abordar o problema do trabalho e da produção.” Isabelle Stengers
“I want to say, in all seriousness, that a great deal of harm is being done in the modern world by the belief in the virtuousness of work, and that the road to happiness and prosperity lies in an organized diminution of work.” Bertrand Russell (Quero dizer, com toda a seriedade, que um grande mal está a ser causado ao mundo moderno pela crença na virtude do trabalho, e que o caminho para a felicidade e a prosperidade está numa redução organizada do trabalho)
“[La atención] Es la cualidad, para Simone Weil, de todo aprendizaje y de toda relación no instrumental con los otros. Lo único que debe enseñarse en la escuela, recomienda provocadoramente Weil, es justamente a prestar atención.” Amador Fernández-Savater
Para introduzir a segunda parte deste post, retomo L.M. Sacasas e as interrogações que lança no artigo citado na primeira parte: “(...) que experiências poderiam realmente oferecer algo como descanso, renovação ou uma modesta medida de satisfação? Que práticas podem prosperar fora dos limites da racionalidade económica, optimização e consumo? Existe uma maneira de recalibrar os ritmos dos nossos dias, semanas, meses e anos para que gerem significado e uma medida de harmonia interna e comunitária?”
Na verdade, as tentativas de responder a estas perguntas foram já ensaiadas por diferentes autores e em diferentes épocas: p.ex. por Paul Lafargue no seu ensaio “Le droit à la paresse - Réfutation du Droit au travail” publicado em 1880 (edição portuguesa aqui); por Bertrand Russell no ensaio “In Praise of Idleness” publicado em 1932; ou por Simone Weil numa carta escrita em 1942 e intitulada “Réflexions sur le bon usage des études scolaires en vue de l'amour de Dieu” (tradução inglesa aqui) e incluída na compilação ‘Attente de Dieu’ publicada em 1950. Estes três textos invocam, respectivamente, os conceitos da preguiça, do ócio e da atenção.
No seu ensaio, escrito no auge dos movimentos de luta dos trabalhadores por condições dignas de meados do séc. XIX, Lafargue põe em causa o lema do ‘direito ao trabalho’ da revolução de 1848 e denuncia a ‘santificação’ do trabalho por considerá-la um “dogma desastroso” do moralismo burguês que seduziu o proletariado, mas legitima a exploração capitalista e promove a escravização voluntária. Em contraste com a exigência dos sindicatos de “oito horas para trabalhar por um salário digno, oito para descansar e oito para o ócio criativo”, Lafargue reivindica uma jornada diária de trabalho de três horas! Passo a citar: “Uma estranha loucura tomou posse das classes trabalhadoras das nações onde reina a civilização capitalista. Essa loucura arrasta consigo as misérias individuais e sociais que, há séculos, torturam a triste humanidade. Essa loucura é o amor ao trabalho, a moribunda paixão pelo trabalho, levada ao esgotamento das forças vitais do indivíduo e de sua prole. Em vez de reagir contra essa aberração mental, os padres, os economistas, os moralistas ‘sacrossantificaram’ o trabalho. (...) A nossa época é, diz-se, o século do trabalho; é de facto o século da dor, da miséria e da corrupção. E, no entanto, os filósofos, os economistas burgueses, (…) homens de letras burgueses, (…) todos entoaram canções nauseantes em homenagem ao deus Progresso, o filho mais velho do trabalho.” E mais adiante: “Se, arrancando do seu seio o vício que a domina e avilta a sua natureza, a classe operária se sublevasse na sua incrível força, não para exigir os Direitos do Homem, que são apenas os direitos da exploração capitalista, nem para reivindicar o direito ao trabalho, que é apenas o direito à miséria, mas para forjar uma lei de ferro, proibindo qualquer homem de trabalhar mais de três horas por dia, a Terra, a velha Terra, estremecendo de alegria, sentiria um novo universo brotando dentro dela... Mas como pedir a um proletariado corrompido pela moral capitalista uma resolução viril?”
Paul Lafague e Laura Marx |
Escritas há mais de 150 anos, as palavras de Lafargue, que na época suscitaram perplexidade e reprovação da parte de muitos dos seus camaradas socialistas, permanecem relevantes ainda hoje. No colóquio internacional “Le droit à la paresse, nécessaire, urgent?!” realizado em 2011 na Universidade de Bruxelas para assinalar o centenário da morte de Lafargue e de Laura Marx, a filósofa belga Isabelle Stengers invocou e actualizou o texto de Lafargue numa palestra com o título ‘Le droit à la paresse, une revendication cruciale’ (O direito à preguiça, uma reivindicação crucial). No seu texto, Stengers faz uma crítica da recriminação dos chamados ‘maus desempregados’, e do veneno do ressentimento e da mobilização permanente incutidos pelo produtivismo trabalhista. Passo a citar: “Vivemos num tempo e época em que a competitividade é o imperativo categórico em nome do qual empresas, cidades, regiões, países e continentes se viram uns contra os outros. Um tempo e época onde os homens e mulheres de negócios são proclamados anjos da guarda pelos trabalhos que criam ou salvam. Em tal tempo e época reivindicar o direito à preguiça parece ser uma traição, um apelo à apatia, quase uma blasfémia! (…) Nos dias de hoje, a redução das horas de trabalho já não constitui uma reivindicação ‘reformista’, é quase um ponto de vista revolucionário. (…) A competitividade é, sem dúvida, o doce e consensual eufemismo para uma guerra que destrói toda a solidariedade, a possibilidade de pensar e de imaginar. A canção do escravo com a qual estamos todos tão familiarizados pretende incitar as pessoas a auto reciclarem-se de forma contínua, incitá-las a preservar o capital que as torna atractivas, ou de colher os seus frutos, incentivá-las a enviar o sinal correcto, por exemplo, um pedido desesperado por um ‘emprego’, não importando que tipo de emprego. E claro, como em qualquer guerra, também ouvimos o clamor: “abaixo os desertores”; ou seja, os ‘maus’ desempregados, aqueles que não tentam ‘verdadeiramente’ encontrar um trabalho. (…) aceitámos a legitimidade da acusação que os ‘maus’ desempregados «tiravam partido do sistema». E, por conseguinte, também aceitámos que os desempregados eram uma categoria de gente que tinha de ser posta sob vigilância; eram suspeitos, pessoas que eram potencialmente culpadas. (…) o ressentimento prevaleceu sobre a imaginação, sobre o poder de pensar, o poder de criar. Lutar contra o conflito entre o ‘bom’ e o ‘mau’ desempregado significa lutar contra a força predominante do ressentimento que, se não tomamos cuidado, nos esmaga e infecta. Temos de encontrar uma forma de nos protegermos contra este ressentimento, caso contrário seremos forçados à posição defensiva e lutaremos de costas contra a parede. Não passaremos de uma multidão de dóceis trabalhadores, sempre prontos a entoar a canção do escravo assim que os nossos patrões anunciarem que «os empregos estão ameaçados» – salvem os nossos trabalhos, por favor, mesmo que isso mate o planeta. (…) Lutar contra o sagrado dever de arranjar um trabalho - não interessa que tipo de trabalho, ou melhor, contra a necessidade de fingir que «aqueles que realmente quiserem» poderão efectivamente encontrar um emprego se se esforçarem o suficiente – não tem nada a ver com aceitar o desemprego organizado. Tal luta cria imaginação colectiva, mesmo naqueles que realmente e desesperadamente procuram um emprego. É uma luta que, tal como todas as lutas não reformistas, testa os nossos vínculos com a ordem estabelecida.”
Também o notável pensador britânico Bertrand Russell em “In Praise of Idleness” (Elogio ao ócio) argumentou que o trabalho era uma virtude sobre-estimada e que uma vida civilizada exigia tempo de lazer em que os interesses pessoais pudessem ser realizados. Russell considerava que o legado explorador da sociedade pré-industrial tinha corrompido o tecido social moderno e distorcido o sistema de valores vigente: “Um sistema que durou tanto tempo e terminou tão recentemente deixou naturalmente uma profunda impressão nos pensamentos e opiniões dos homens. Muito do que tomamos como certo sobre a desejabilidade do trabalho é derivado desse sistema e, sendo pré-industrial, não está adaptado ao mundo moderno. A técnica moderna permitiu que o lazer, dentro de certos limites, não fosse uma prerrogativa de pequenas classes privilegiadas, mas um direito igualmente distribuído por toda a comunidade. A moral do trabalho é a moral dos escravos, e o mundo moderno não precisa da escravidão.” O autor considerava também que a mecanização da produção havia chegado a tal ponto que ninguém precisaria de trabalhar mais de vinte horas por semana para dar uma contribuição justa à sociedade. No entanto, ele via uma sociedade em que um grande número de pessoas estava desempregada, enquanto a maioria dos demais estava sobrecarregada de trabalho (muitas vezes fornecendo produtos e serviços de valor questionável). Russell via a crença no dever de trabalhar como parte da “moralidade dos escravos”, um artifício usado pelos detentores do poder para induzir outros a viver para os interesses dos seus senhores: “Eu penso que há demasiado trabalho feito no mundo, que um imenso dano foi causado pela crença de que o trabalho é virtuoso, e que o que precisa ser preconizado nos países industriais modernos é bem diferente daquilo que tem sido pregado.” Russell apercebeu-se também de que a já distorcida relação com o trabalho estava a ser exacerbada pela confusão entre necessidades e desejos no cerne do materialismo capitalista: “O que acontecerá quando for alcançado o ponto em que todos possam sentir-se confortáveis sem trabalhar longas horas? No Ocidente, temos várias maneiras de lidar com esse problema. Não temos nenhuma tentativa de justiça económica, de modo que uma grande proporção da produção total vai para uma pequena minoria da população, muitos dos quais não trabalham. Devido à ausência de qualquer controlo central sobre a produção, produzimos inúmeras coisas que não são desejadas. Mantemos uma grande percentagem da população trabalhadora ociosa, porque podemos dispensar do seu trabalho fazendo com que os outros trabalhem demais. Quando todos esses métodos se mostram inadequados, temos uma guerra; fazemos com que várias pessoas fabriquem explosivos de alta potência e outras tantas os explodam, como se fôssemos crianças que acabaram de descobrir fogos de artifício. Por meio de uma combinação de todos esses artifícios, conseguimos, embora com dificuldade, manter viva a noção de que uma grande quantidade de trabalho braçal severo deve ser o destino do homem comum.” Impressiona constatar que passados quase 100 anos desde que foram escritas estas linhas quase nada mudou… Finalmente, Russell defendeu ainda que a desvalorização ou demonização do ócio estava ligada às injustiças e desigualdades sociais e que apenas a sua revalorização poderia superá-las. O seu argumento mais convincente é também o mais contra-intuitivo – a ideia de que reivindicar o direito ao ócio não é um reforço do elitismo, mas o antídoto para o próprio elitismo e uma forma de resistência à opressão, pois exigiria o desmantelamento das estruturas de poder da sociedade moderna, desfazendo o feitiço que elas lançaram sobre nós para manter os pobres pobres e os ricos ricos. Calibrar corretamente a vida moderna em torno da suficiência - isto é, em torno de atender à necessidade de conforto em vez de satisfazer o desejo interminável de ganância consumista - seria lançar as bases para a justiça social: “Num mundo onde ninguém é obrigado a trabalhar mais de quatro horas por dia, qualquer pessoa possuidora de curiosidade científica poderá satisfazê-la, e todo o pintor poderá pintar sem passar fome, por mais excelentes que sejam os seus quadros. Os jovens escritores não serão obrigados a chamar a atenção para si mesmos através de novelas sensacionalistas, a fim de adquirir a independência económica necessária para obras monumentais, para as quais, quando finalmente chegar a hora, terão perdido o gosto e a capacidade. (…) Acima de tudo, haverá felicidade e alegria de viver, em vez de nervos em franja, cansaço e dispepsia. O trabalho exigido será suficiente para tornar o lazer agradável, mas não o suficiente para produzir exaustão. Dado que as pessoas não estarão cansadas no seu tempo livre, elas não exigirão apenas diversões passivas e insípidas.”
As ideias expressas por Simone Weil na carta de 1942 citada acima, foram invocadas por Amador Fernández-Savater num livro que co-editou e foi publicado já este ano com o título “El eclipse de la atención” (que inclui o texto integral da carta de Weil, entre textos de outr@s autor@s), assim como num artigo para o jornal digital CTXT, intitulado “Por un ‘comunismo’ de la atención”. Segundo Savater, para Weil “a atenção é a capacidade de esperar. Uma espera não resignada, mas activa, intensa, alerta. (…) não é um esforço laborioso da vontade, mas um estado de abertura e disponibilidade. Ao mundo, aos outros e à situação que vivemos. Não requer trabalho árduo ou disciplina, mas antes um relacionamento com desejo e alegria. Se há desejo há atenção, prestamos atenção ao que desejamos. Não consiste tanto em ‘enfocar’ ou ‘centrar’, mas em esvaziar-se de preconceitos para poder acolher algo desconhecido e não previsto de antemão. Para Simone Weil, é a qualidade de toda a aprendizagem e de todas as relações não instrumentais com os outros. A única coisa que deve ser ensinada na escola, recomenda Weil provocadoramente, é justamente prestar atenção.”
Regressando ao tempo presente, Savater (bem como outr@s dos autor@s que contribuíram para o livro citado) constata que a nossa capacidade de atenção está afinal a ser ameaçada por um sistema económico que a capturou e mercadorizou. No prólogo daquele livro escreve: “O colapso atencional está na encruzilhada de algumas tendências-chave do mundo atual: a economia que transforma a visibilidade na mercadoria mais valorizada, formas de trabalho precárias e multitarefa, zapping e scrolling como formas de se relacionar com as coisas, o horror vacui contemporâneo. A crise de atenção é, certamente, aquela que pode revelar com maior precisão a essência da sociedade em que vivemos. (…) Em todas as situações da vida quotidiana, uma estranha guerra está a ser travada entre as forças que exploram a nossa atenção - eletrocutando-a e esgotando-a - e as forças capazes de revitalizá-la, de renová-la, de reativá-la.” No artigo mais recente, Savater diagnostica: “No atual colapso da atenção, entendida como capacidade de esperar e escutar singularmente o outro, quem ou o que se encarrega do mundo por nós? Os automatismos. Todos os tipos de normas, protocolos e algoritmos organizam a vida individual e colectiva hoje. O automatismo não espera: ele sabe de antemão. O automatismo não escuta: pressupõe e calcula. O problema actual não é estarmos demasiado distraídos, mas sim a delegação massiva da nossa atenção a mecanismos que vêem, entendem e decidem por nós. (…) A vitória da lógica do lucro sobre qualquer outro valor social provoca este ‘transbordamento’ em que vivemos. Vidas individuais, centros de cuidados primários, escolas e o próprio planeta são explorados, precarizados e não conseguem dar resposta. Os automatismos aparecem como o único mecanismo capaz de atender às exigências contemporâneas de imediatismo e eficácia. Transbordamento, crise assistencial e automatismos como única resposta: como sair deste aparente círculo vicioso catastrófico?” Para Savater, a resposta será o resgate da atenção – como a entendia Weil, mas ampliada como bem comum para conseguir responder aos desafios das sociedades contemporâneas: “A batalha pela atenção é inseparável da luta pelo desejo e pelo tempo, pela reapropriação da nossa capacidade de fazer e desfazer o mundo. É, portanto, mais uma dimensão da política emancipatória, da política como prática de transformação do mundo, como questão coletiva para o comum. A atenção é também uma potência que rompe o estabelecido, o domínio dos automatismos, em busca de algo diferente, mais aberto e mais livre. (…) Entre o íntimo e o colectivo, entre o social e o político, entre o psíquico e o ecológico, surge hoje a linha transversal da atenção. O cuidado como prática e como exigência, como um novo bem comum. O que imaginamos com a expressão ‘comunismo da atenção’? Não um regime ou uma instituição, mas práticas de comunização do cuidado. De exercício e proteção da atenção. (...) A terapia individual permanece estreita sem preocupação com o mundo comum. A luta colectiva não vai muito longe sem abordar a dimensão pessoal e subjetiva. A atenção é a interface entre o meu sistema nervoso e a crosta terrestre. A arte de se mover na reciprocidade, na relação, no ‘entre’ que sustenta o mundo.”
Tentando ligar os fios de reflexão crítica trazidos pelos pensadores que citei, parece-me que só uma ampliação da atenção e da sensibilidade - individuais e colectivas, e apenas possíveis com uma revalorização do ócio e uma libertação do trabalho (encarado como compulsão ou obrigação) - poderão fornecer os antídotos essenciais para quebrar o feitiço e as amarras geradas pela voragem produtivista, utilitarista e consumista que domina e intoxica as sociedades contemporâneas. Termino com duas citações dos textos que citei:
Amador Savater: “«Viver intensamente é viver atento» tem sido dito, de diversas formas, por sábias vozes ao longo dos tempos. Viver atento significa estar dentro das situações que vivemos, viver envolvido. A atenção é uma arte da presença, de estar presente naquilo que temos para viver. É a única plenitude que podem escolher existências sempre abertas e inacabadas como a humana.”