Nota: Esta é a 3ª parte de um post que inaugura uma nova secção de apontamentos das pesquisas deste Respigador com chamadas para acontecimentos, artigos, entrevistas, livros ou vídeos com que me vou cruzando e que me pareceram merecedores de destaque e partilha. A 1ª parte está aqui e a 2ª aqui.
No final do mês de Fevereiro passou um ano desde o início da guerra na Ucrânia e em Março assinalaram-se os 20 anos da guerra no Iraque. Muito se escreveu e comentou sobre as duas efemérides, mas destaco aqui os livros do jornalista e analista político norteamericano Norman Solomon (‘War made easy’ 2005 e ‘War made invisible’ 2023), bem como o documentário baseado no 1º livro (War made easy 2007), que se debruçam principalmente sobre o segundo conflito. O site noticioso independente Democracy Now! entrevistou recentemente Solomon sobre o papel dos media corporativos ocidentais na propaganda de apoio à guerra no Iraque e ao militarismo norteamericano. Solomon, que apelida os EUA de ‘warfare state’, destaca os evidentes paralelismos entre os dois conflitos, com idênticas alegações hipócritas de defesa da liberdade e da democracia por parte de governantes e media, e retira importantes ilações sobre o conflito actual na Ucrânia. É possível acompanhar a entrevista aqui (14 min) e visionar o documentário completo aqui (1h10). Sabendo que, no actual clima propagandístico, muitos tenderão a rotular Solomon de ‘putinista’ ou ‘pró-russo’, sugiro que leiam o seu recente apelo à paz e à co-responsabilização de EUA e Rússia por colocarem o mundo à beira dum conflito nuclear.
A história repete-se porque os senhores da guerra - as elites do poder das grandes potências militares mundiais - estão prisioneiros de uma ideia de geopolítica retrógrada e sociopata, que serve os interesses financeiros da máquina da guerra - também conhecida por complexo militar-industrial -, sacrificando as populações de países terceiros. Lamentavelmente, os media continuam a desempenhar o papel de apologistas das guerras ‘justas’, ‘inadiáveis’ e ‘inevitáveis’, tocando os tambores da guerra para captar audiências e angariar financiamentos publicitários. É por tudo isto que estamos novamente à beira de um conflito mundial, com a agravante de ter sido ressuscitado o espectro do holocausto nuclear da Guerra Fria. E desta vez nem sequer há manifestações pela paz, com dezenas de milhares de pessoas nas ruas de todo o mundo, como há 20 anos atrás. Na verdade, houve no final de Fevereiro algumas manifestações nos EUA (Rage Against The War Machine, em Washington DC – ver aqui e aqui) e na Europa (Rebellion for Peace, Berlin; Génova e Milão – ver aqui, aqui e aqui), mas que foram depreciadas ou difamadas pela maioria dos media ocidentais (ver p.ex. este artigo da DW sobre a manifestação de Berlin). Talvez não fizessem a diferença (como não fizeram há 20 anos...), mas seriam um sinal de que o desejo da paz ainda está vivo (no ‘ocidente’). Sobre a infame e desonesta desvalorização das manifestações pela paz, recomendo aliás a leitura deste artigo da jornalista australiana Caitlin Johnstone ou o visionamento de um novo documentário sobre a guerra no Vietnam - ‘The Movement and the Madman’ - estreado a 28 Março no canal PBS (recomendado por Solomon no artigo que citei acima). Excerto do texto de Johnstone: “(…) public demonstrations are one of the many ways in which our society can be drawn toward awareness of what’s really going on in our world, what our rulers are really up to, and how much we’ve been lied to all our lives. From there health can follow, because with enough awareness people will cease consenting to things that they’ve come to recognize as being against their interests. (…) Anything we can do to get people opening their eyes to the horrors of imperial warmongering and start bringing some actual movement into the anti-war movement will help. Our survival may very well depend on it.”
A celebração do Dia da Mulher aconteceu igualmente no mês de Março, tendo recebido uma cobertura mais discreta e sem gerar grande controvérsia. Embora nem sequer seja apologista dos chamados ‘dias simbólicos’, quis assinalar a data com a partilha dos testemunhos de duas mulheres norte-americanas que poderiam fazer a diferença como alternativas políticas credíveis ao duopólio que sequestrou a democracia nos EUA - situação que espelha obviamente o que acontece em muitas outras ‘democracias ocidentais’. Destaco a clareza dos seus discursos na identificação das causas profundas que nos trouxeram ao momento presente e na elencagem de estratégias e caminhos alternativos. Refiro-me a Jill Stein, ex-candidata à presidência pelo 'Green Party' – ver p.ex. recente entrevista conduzida por Kim Iversen –, e a Marianne Williamson, actual candidata às primárias do Partido Democrata (já tinha sido igualmente candidata em 2019) – ver p.ex. entrevista por Flo Read. Sintomaticamente, os media corporativos e até a assessora de imprensa da Casa Branca, apressaram-se a difamá-la ou ridicularizá-la após o recente lançamento da sua candidatura (ver p.ex. aqui ou aqui). Celebremos estas mulheres: "Power to the women / Women got the power!"
Quero ainda destacar dois livros publicados recentemente. Um deles é ‘The dawn of everything - a new history of humanity’ (publicado originalmente em 2021 e traduzido este ano para português – ver aqui), escrito pelo arqueólogo britânico David Wengrow e pelo antropólogo (e activista/libertário) norteamericano David Graeber (falecido precocemente em 2020). O livro atraiu bastante atenção e tem gerado alguma polémica, tendo recebido muitas críticas elogiosas (ver p.ex. aqui), mas também outras menos abonatórias (ver p.ex. aqui). Neste livro, Graeber e Wengrow põem em causa a narrativa hegemónica sobre a história da humanidade, focando alguma atenção na génese e evolução da desigualdade. Ainda não tive oportunidade de ler (o livro tem mais de 700 páginas), mas do que fui respigando até agora, acho que valerá a pena conhecer aquilo que Wengrow e Graeber têm para dizer. A partir de observações coligidas em diversos pontos do globo e provenientes de diferentes períodos históricos, os autores contestam a sequência linear da evolução das sociedades humanas ainda prevalecente nas narrativas históricas mais populares - caçadores-colectores, agricultura, cidades, civilizações, comércio, globalização - e privilegiam uma outra versão multipolar, com diferentes momentos e lugares de experimentação social e política. Algumas das suas principais teses são: a desigualdade social não está intrinsecamente associada às sociedades mais complexas e avançadas tecnologicamente (ou seja, a desigualdade não é consequência 'natural' ou um efeito colateral da civilização), algumas sociedades humanas com populações consideráveis desenvolveram práticas políticas diversificadas, não necessariamente hierárquicas, e diversas ideias do iluminismo europeu tiveram a sua origem no conhecimento e práticas de povos e sociedades indígenas (consideradas 'primitivas') que tinham uma visão crítica das práticas sociais e políticas europeias. Quanto à tese mais controversa de que a igualdade entre pares ou entre géneros nunca terá existido nas populações humanas, os antropólogos Nancy Lindisfarne e Jonathan Neale (autores do livro ‘Why Men? A human history of violence and inequality’, a sair como ebook ainda este ano) alegam, num artigo no The Ecologist citado acima, que Wengrow e Graeber negligenciaram evidências recentes (nomeadamente os trabalhos de Christopher Boehm ou de Sarah Hrdy) que mostram exactamente o contrário, ou seja, que as sociedades igualitárias existiram durante longos períodos históricos. Ainda assim, creio que há muitas e importantes ilações a retirar das leituras que os autores fazem da diversidade de práticas culturais e sociais das sociedades humanas para o momento presente, mas deixo que cada um/uma o faça por si directamente a partir da fonte. As visões destes autores terão naturalmente os seus vieses e contrastam com as de alguns historiadores mais mediáticos (p.ex. Jared Diamond ou Yuval Harari), mas a sua proposta de olhar para (e de ver/ler) o manancial de informação/conhecimento existente (antropológico e arqueológico), de fazer perguntas diferentes e de questionar as narrativas monolíticas dominantes, é, a meu ver, não só lícita, como absolutamente vital! Deixo links para alguns vídeos de 2022, para abrir o apetite: TED-talk de Wengrow e duas entrevistas suas ao canal Democracy Now! (que inclui excertos de depoimentos de Graeber) e ao canal Novara Media.
O outro livro editado este ano, mais discreto e num registo mais inspiratório, intitula-se ‘2 milliards de réenchanteurs — le manifeste des acteurs du changement’ e foi escrito por Aurélie Piet, especialista em economias alternativas, e por Marc Luyckx Ghisi, filósofo e teólogo, ex-membro da comissão europeia inicialmente criada por Jacques Delors. O texto, escrito na forma de manifesto, tem como objectivo mostrar a importância e a dimensão daquilo a que os autores denominam ‘a nova placa tectónica dos actores da mudança’ em todo o mundo, tentando responder às perguntas: “Quem somos nós? Que mundo estamos a criar? Porque é que esta nova placa tectónica se imporá como evidente?” É possível assistir ao lançamento do livro nesta ligação. Excerto do resumo: “Cidadãos do mundo, minoria criativa, indignados, criativos culturais, essas são as várias denominações que nós, agentes de mudança, carregamos. Não existe uma definição consensual porque os nossos contornos, os nossos compromissos e as nossas ações podem ser diferentes. No entanto, o que compartilhamos é a firme vontade de mudar o mundo. Aspiramos a uma vida mais qualitativa, mais ética, mais justa, mais humana e mais respeitosa. A mudança de civilização já está em marcha e vem de baixo. Somos mais de 2 mil milhões de reencantadores, de cidadãs e de cidadãos a realizar milhões de revoluções silenciosas em todo o planeta. Uma força colossal que nenhum poder económico, político ou militar pode deter. Juntos, estamos a construir uma sociedade portadora de sentido, a nova placa tectónica do mundo de amanhã.”
Finalmente, uma referência ao momento que se vive entre nós, marcado por movimentos de contestação e greves por parte de sectores profissionais negligenciados, como os professores, ou contestando os aumentos especulativos do custo de vida e de bens essenciais, como os alimentos ou a habitação. Para ilustrar o tema partilho um texto do colectivo Comuna de Arroios para a revita Punkto que destaca o papel do apoio mútuo e da solidariedade na construção de comunidades autónomas capazes de fazer frente à ofensiva neoliberal que mercantiliza e gentrifica as cidades, com propostas concretas para a cidade de Lisboa. Excertos: “(…) Torna-se então necessário pensar a autonomia de modo que não seja apenas uma capacidade de resiliência subalterna. É na constituição de uma autonomia ofensiva que se dá a possibilidade de pensar o fim do capitalismo. Uma autonomia que exista enquanto algo que conquista território e poder ao desastre capitalista. O apoio mútuo deve tornar-se numa forma de poder ofensivo, deve colocar em crise os mecanismos de reprodução do estado e do capital. Não se trata apenas de ensaiar entre amigos os gestos bonitos de um mundo por vir, trata-se de organizar formas de entre-ajuda e de solidariedade de modo a que estes gestos se tornem ofensivos, onde acumulem poder, onde construam laços de solidariedade e de confiança. (…) O desafio político das próximas décadas será reconstruir um tecido de reprodução social autónomo à devastação do capitalismo. (…) O objetivo político imediato é impedir, por inúmeros meios, que a transformação da cidade de Lisboa em metrópole capitalista se concretize. Até há pouco tempo, Lisboa mantinha uma população proletária e popular no seu centro. Era essa que, de modo mais agressivo ou mais passivo, resistia à modernização capitalista da cidade, ou seja, resistia à transformação da cidade em ‘asset’ financeiro, em centro comercial, em fábrica difusa. A gentrificação não significou apenas o encarecimento das rendas, foi também a tentativa de arrancar pela raiz uma cultura popular urbana que se recusava a assumir os padrões de produtividade das novas culturas metropolitanas. Foi essa cultura urbana que fez o PREC e foi essa cultura urbana que resistiu à troika e à austeridade. Para a destruir não bastou importar a cultura do empreendedorismo, foi também necessário transformar em mercadoria imaterial as formas de vida boémias e populares da cidade.”
Ophris lutea (Fanhões) |