segunda-feira, 30 de setembro de 2024

Rejeitar a guerra para defender a paz

A paz constrói-se com a paz, eliminando a guerra da história da humanidade. Ser a favor da paz é fundamental, mas não é suficiente. (…) Acima de tudo, temos de ser contra a guerra”. Carta aberta ‘Pela rejeição total da guerra’ (Agora des Habitants de la Terre)

a paz hoje não tem acolhimento, porque os ventos sopram no sentido da guerra”. Manuel Pinto

A publicação recente de uma missiva que apela ao repúdio cabal da guerra (ver adiante) levou-me a regressar ao tema que me tem atormentado o espírito desde há meses, aliado a uma necessidade de exorcizar os sentimentos de angústia e de frustração que tantas vezes ameaçam paralisar-me. O espectro da(s) guerra(s) continua a empestar o ar – e ainda mais intensamente do que quando escrevi o post sobre as guerras perpétuas em Março deste ano (onde denunciei a hipocrisia e a desfaçatez das elites que as promovem, bem como as suas manobras de propaganda). Soam de novo os tambores da guerra: anuncia-se a Terceira Guerra Mundial, a Guerra Total, o Apocalipse e o Armagedão – ver p.ex. aqui ou aqui!... Como se não tivéssemos já ameaças existenciais suficientes para nos desassossegar e tirar o sono... A funesta e insistente narrativa mediática sobre as guerras eminentes ou em curso (NATO vs. Rússia, Médio Oriente, EUA vs. China) ameaça não só normalizar a sua perpetuação, como procura legitimar despudoradamente a sua alegada inevitabilidade e a crescente militarização (como já tinha denunciado no meu post de Março). Por outro lado, oculta outras que passam quase desapercebidas aos olhares do mundo, como a guerra mortífera no Sudão – ver p.ex. aqui. Mesmo aquilo que eu achava que era um linha vermelha que a humanidade do século XX tinha decidido que nunca voltaria a ultrapassar – um conflito nuclear – voltou a ser invocado por políticos de diferentes quadrantes ideológicos e geografias, assim como por jornalistas dos media dominantes (mas não só) – ver aqui, aqui ou aqui. Um dos componentes da narrativa deplorável de alguns governantes ocidentais para legitimar o seu belicismo e os gastos militares tem sido a repetição do axioma (ou seus derivados), com origem num autor do Império Romano, Si vis pacem, para bellum – “se queres a paz, prepara-te para a guerra” – ver p.ex. aqui ou aqui –, habilmente desconstruído por Manuel Pinto num artigo com o título “Se queres a guerra, despreza a paz” (mas também na carta aberta que analiso mais abaixo), onde o autor associa aquela retórica à tentativa de justificar a canalização de fundos públicos para os orçamentos militares e para as empresas de armamento.


No caso das incursões militares em curso na Palestina e no Líbano (e que ameaçam alastrar ainda mais), perpetradas pelo governo sionista de Bibi Netanyahu e com o conluio dos EUA e de diversos países europeus, o consenso no apoio (quase) incondicional à actuação impune de Israel foi conseguido nos EUA por pressões vindas de sectores religiosos conservadores (evangélicos ou cristãos sionistas), como a CUFI (‘Christians United for Israel’) – ver p.ex. aqui –, ou de grupos de lóbi israelitas, como o AIPAC (‘American Israel Public Affairs Committee’) – ver p.ex. aqui – ou a ‘Voices of Israel’ – ver p.ex. aqui. O primeiro caso é especialmente revelador e foi denunciado no documentário “Praying for Armageddon” da realizadora norueguesa Tonje Hessen Schei, em colaboração com o norte-americano Michael Rowley – é possível assistir às duas partes do documentário que foi exibido pela Al Jazeera: aqui e aqui. As revelações mais significativas são, por um lado, a marcada influência da corrente evangélica mais fundamentalista na política externa norte-americana, em particular, por parte dos Republicanos (incluindo o ex-presidente Donald Trump), e, por outro, a sua argumentação no apoio incondicional a Israel baseada numa leitura literal da Bíblia que alega que nos aproximamos do Armagedão e da 2ª vinda de Jesus, eventos nos quais Israel e a presença dos judeus na cidade de Jerusalém teriam um papel central. O fundamentalismo religioso que o Ocidente atribui aos países muçulmanos, e em particular ao Irão, e que usa como pretexto para apoiar o belicismo mortífero de Israel e do seu governo radical, está afinal profundamente enraizado na sociedade americana e reflecte-se de forma evidente e chocante na política externa dos EUA para o Médio Oriente, independentemente da filiação política da administração vigente. A irracionalidade do fundamentalismo religioso está portanto também a desvirtuar por dentro os “valores ocidentais” do direito à paz, à auto-determinação e à liberdade.


Esta tese é igualmente invocada pelo jornalista argentino Alberto López Girondo no seu artigo “Apocalipsis (Bíblico) Now”. O autor começa por citar o livro “The Age of Extremes” (1994) do historiador (marxista) britânico Eric Hobsbawm, onde este analisa os conflitos militares entre 1914 e 1991 como espelhos das pretensões incontroladas de poder e dominação das nações beligerantes, estimuladas pelos modelos económicos antagónicos, mas igualmente expansionistas, do capitalismo e do socialismo de Estado: “Por que razão, então, as principais potências de ambos as facções consideraram a Primeira Guerra Mundial como um conflito no qual só se podia contemplar a vitória ou a derrota total? A razão é que, ao contrário de outras guerras anteriores, impulsionadas por motivos limitados e concretos, a Primeira Guerra Mundial, perseguia objectivos ilimitados. Na era imperialista, produziu-se a fusão da política e da economia. A rivalidade política internacional estabeleceu-se em função do crescimento e da competitividade da economia, mas o elemento característico era precisamente o de não ter limites”. Para López Girondo (com base nas teses de Hobsbawn), é a situação actual de tensão crescente de domínio imperialista (e económico) entre o bloco EUA/Europa (NATO) e o bloco Rússia/China que está na origem dos conflitos militares em curso, onde a submissão e a violência se sobrepõem a qualquer possibilidade de conciliação. O autor questiona-se então: “Quão loucos são os líderes do primeiro quartel do século XXI? Até que ponto estariam dispostos ao ‘tudo ou nada’ para manter a supremacia? Quão racionalmente poderiam agir quando na sociedade da nação mais poderosa – embora em declínio – existem grupos cada vez mais numerosos e influentes que não temem o Armagedão, mas muito pelo contrário: procuram-no com uma fé religiosa, desesperada por começar um novo mundo melhor, para acabar com o Mal na Terra?” López Girondo invoca, sucessivamente, o plano clandestino chamado “The Armageddon Plan” desenhado por Dick Cheney e Donald Rumsfeld durante a administração Reagan para garantir a continuidade da governação na eventualidade de uma ataque militar de grande dimensão (p.ex. um ataque nuclear), o ressurgimento da ameaça nuclear após o início da guerra na Ucrânia em 2022 (e o discurso de Joe Biden onde este afirmou que o mundo está no nível mais próximo do Armagedão desde a Crise dos mísseis de Cuba) e ainda a tese fundamentalista evangélica do Armagedão e da ‘guerra justa’ para justificar o apoio dos EUA ao estado de Israel na sua fúria vingativa e genocida contra os palestinos em Gaza (a que me referi acima). López Girondo cita o crítico de cinema Matthew Carey que comenta o documentário “Praying for Armageddon” (aqui): “Imaginem não só acreditar que o mundo está a chegar ao fim, mas também querer que isso aconteça. Ardentemente. Então, dêem um passo mais e imaginem pessoas com esta mentalidade a projetar a política e as relações externas americanas para alcançar exatamente aquilo que procuram: o apocalipse”. O jornalista argentino relembra então as acusações de fundamentalismo religioso usadas no Ocidente para condenar as acções militares terroristas, em especial de grupos ou países muçulmanos, e confronta-as com o fundamentalismo dos evangélicos americanos que invocam leituras literais da Bíblia para justificar ‘guerras santas’ apocalípticas, mas também com a lei aprovada pelo Knesset em 2018 que designa Israel como “o Estado-nação do povo judeu, no qual exercem o seu direito natural, religioso e histórico à autodeterminação”, acrescentando que este direito à autodeterminação é “exclusivo do povo judeu”. Finalmente, López Girondo refere-se aos sucessivos avanços e recuos nas negociações dos tratados de não proliferação nuclear ou de redução de armas estratégicas, assim como ao belicismo expresso por dirigentes ocidentais que invocam o axioma romano (que citei acima) para justificar a guerra por procuração contra a Rússia, culminando com a impensável ameaça dos preparativos para um conflito nuclear entre os eixos EUA-Europa e Rússia-China num futuro próximo.


Felizmente, ainda vão surgindo vozes sensatas que se revoltam contra estas posturas belicistas, doentias e distópicas, e que me dão algum alento. Aconteceu recentemente quando me cruzei com uma carta aberta intitulada “Pour le refus intégral de la guerre” (“Pela rejeição total da guerra”, versão PT aqui), publicada pela associação internacional “Agora des Habitants de la Terre” (colectivo que se pugna pela justiça social, pela defesa dos direitos humanos, pela democracia participativa, por um outro desenvolvimento sustentável e pela cidadania global) e subscrita por um conjunto de cidadãos europeus. Recomendo, pelo menos, a leitura do texto introdutório, de onde destaco o seguinte excerto: “Toda a gente diz que é a favor da paz, mas nem toda a gente é contra a guerra. Acima de tudo, temos de ser contra a guerra. Porque é que temos de ser contra a guerra? Porque temos de abandonar a ideia de que, se queremos a paz, temos de nos preparar para a guerra, que sempre foi inventada e imposta pelos detentores do poder para justificar e manter o seu poder e o seu domínio. A guerra é destruição, morte e ódio. Não existe uma «guerra justa» em nome de Deus, da nação, da civilização ou da segurança. Por detrás da invocação destes nomes, está sobretudo a lógica assassina da dominação e os interesses económicos de poder e riqueza dos mais fortes.” Achei particularmente relevante a visão sistémica que lhe está subjacente, patente em parte da argumentação que traça paralelos entre as posturas bélicas do Ocidente e a defesa do modelo socioeconómico dominante, como por exemplo neste trecho: “Como é que se pode eliminar a guerra? Através da audácia e da fraternidade. (...) É uma ilusão pensar que é possível construir a paz sem abolir as patentes de apropriação privada para fins lucrativos, sem proibir as licenças de comércio de armas, sem [abolir] os paraísos fiscais, sem eliminar a independência dos mercados financeiros, sem regular as grandes oligarquias planetárias em guerra permanente pelo domínio. Os cidadãos devem libertar-se desta ilusão.” A carta prossegue com a enunciação de quatro reflexões sobre o futuro, que aprofundam a argumentação a favor da mobilização contra a guerra. A primeira defende que a principal narrativa que importa combater é a da instrumentalização da guerra ao serviço da paz, em particular a da “guerra defensiva”: dos ‘valores ocidentais’, do ‘mundo livre’, da ‘economia de mercado livre’. É com esta narrativa que se tentam legitimar a corrida aos armamentos, o comércio internacional de armas e a inflação dos orçamentos militares, mas também as atrocidades sobre populações inteiras. Para inverter esta realidade, a carta propõe ilegalizar os tratados internacionais de alianças militares e reformar as Nações Unidas, em particular o Conselho de Segurança para torná-lo eficaz – algo que foi reafirmado agora com a aprovação do Pacto para o Futuro, na semana passada na sede da ONU (ver p.ex. aqui ou aqui).


A segunda reflexão é, a meu ver, especialmente relevante pois sustenta que a mobilização contra a guerra deve ser claramente conduzida com o objetivo de fazer compreender a absoluta inutilidade da guerra e, no contexto actual, a irreparabilidade das destruições provocadas pela guerra, nomeadamente no domínio da vida. Defende que a luta “contra a guerra” deve ter dois objectivos prioritários interdependentes, que são hoje desvalorizados ou desprezados: a efectivação do direito universal à vida para todos e da vida como tal; a salvaguarda e a promoção dos bens comuns mundiais, materiais e imateriais, essenciais à vida. Nesta reflexão relembram-se os diversos tratados internacionais firmados desde a 2ª Guerra Mundial no âmbito das Nações Unidas (como o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, do Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais, da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas à Autodeterminação e ao Autogoverno ou da Declaração sobre a Biodiversidade) que, apesar de não terem conseguido impedir as piores violações, permitiram, até aos anos 80, o funcionamento e o desenvolvimento do sistema mundial, apesar das suas limitações, insuficiências e contradições, da Guerra Fria e de numerosas guerras locais (ligadas ao processo de demolição dos impérios coloniais europeus), mas sem uma terceira guerra mundial. De facto, o mundo assistiu a uma redução do ritmo de crescimento das desigualdades entre países ricos e pobres, o que contribuiu para reduzir o impacto das forças geradoras de conflitos estruturais e, consequentemente, de guerras destrutivas. No entanto, a partir daí, com o desmoronar da União Soviética e os processos de multinacionalização e globalização da economia e das finanças, de acordo com os princípios, objectivos e mecanismos violentos da economia de mercado e do neoliberalismo, o sistema mundial viu explodir as suas contradições, insuficiências e fragilidades, com o recrudescimento de novos conflitos armados entre, ou promovidos por, superpotências imperialistas.


A terceira reflexão sustenta que, uma vez que a mobilização contra a guerra envolve lutas pela reconstrução planetária dos dois pilares já enunciados (direito à vida e bens comuns mundiais), esta deve centrar-se em dois objectivos: a abolição das patentes para fins privados e lucrativos; e a ilegalização da finança predatória. Defende que, em condições marcadas por uma profunda crise do sistema de suporte de vida da Terra, será necessário agir globalmente para “desarmar a tecnologia da conquista da vida” (ou seja, as patentes) e, ao mesmo tempo, “ilegalizar as finanças predatórias” (que se traduzem na transformação de todas as formas de vida em activos financeiros).

A quarta reflexão é dedicada em particular ao genocídio dos palestinianos em Gaza por Israel e defende a condenação cabal e a cessação de qualquer acto de genocídio, encarado como negação total da vida e da justiça. O texto sustenta que pôr cobro ao genocídio não é apenas uma questão de fazer cumprir o direito internacional; “é, acima de tudo, uma questão de responsabilidade humana e ética planetária que incumbe a todos os sujeitos da Humanidade, incluindo as comunidades sociais, culturais e morais do mundo.

Em forma de conclusão, a carta enfatiza que não serão as corporações industriais, tecnológicas e financeiras internacionais ou instituições como o Banco Mundial, o FMI, a União Europeia ou a NATO, que poderão evitar ou impedir uma “Terceira Guerra Mundial”. Isso só será possível numa acção conjunta dos cidadãos indignados de todo o mundo – ver apelo do cientista político italiano Ricardo Petrella a propósito desta carta aberta. São ainda apresentados alguns exemplos de soluções concretas, em complemento ou para reforçar as propostas já formuladas, a aplicar nos domínios da vida, da sua salvaguarda, promoção/proteção, dos direitos e bens comuns, e na promoção das condições necessárias e indispensáveis à construção da paz. É possível subscrever a carta aberta através deste link.


Quanto a mobilizações e manifestações internacionais, destaco a “Terceira Marcha Mundial pela Paz e a Não-Violência”, que partirá de São José da Costa Rica já no dia 2 de Outubro de 2024 para lá regressar no dia 5 de janeiro de 2025, após dar a volta ao mundo. O roteiro passará pela Europa no mês de Novembro. O manifesto pode ser lido aqui. Por outro lado, este fim-de-semana (28-29 Set) houve dois eventos anti-guerra nos EUA, um em Washington DC (“Rage against the war machine”) e outro em Kingston NY (“Peace & Freedom Rally”). Recomendo esta entrevista ao jornalista do The Grayzone e activista anti-guerra Max Blumenthal onde ele realça a importância de dar voz aos protestos contra a guerra num contexto de grande tensão internacional e de ameaça de um conflito nuclear, assim como de descredibilização das contestações e repressão contra a liberdade de expressão.


Não posso ainda deixar de referir-me às diligências internacionais mediadas pelas Nações Unidas no sentido de denunciar e procurar travar os conflitos em curso, em particular nos recentes eventos da Cimeira do Futuro* e da 79ª Assembleia Geral (UNGA79)**, que tiveram lugar na sede da ONU – ver aqui. Lamentavelmente, várias resoluções do Conselho de Segurança (bem como as condenações do Tribunal Penal Internacional) não tiveram impacto na contenção dos conflitos na Ucrânia, no Médio Oriente ou no Sudão, em parte pela recusa das partes beligerantes (ou dos países que as apoiam militarmente) de acordar num cessar-fogo ou numa solução negociada. A maioria dos discursos dos governantes presentes na UNGA79** incluiu pois, quase invariavelmente, referências aos conflitos em curso, em alguns casos com condenações veementes da incapacidade ou ausência de vontade dos beligerantes de cessar as hostilidades e as matanças – ver p.ex. aqui ou aqui. Já o analista de política internacional William Patton defendeu, num recente artigo de opinião, que o Pacto para o Futuro que resultou da Cimeira do Futuro deve ser analisado criticamente, mas que as reacções de cinismo ou de apatia perante a sua antecipada inconsequência são contraproducentes. Em vez disso, Patton defende que: “devemos responsabilizar os nossos líderes pelas suas promessas, especialmente no que diz respeito à reforma há muito esperada do Conselho de Segurança da ONU, que poderá pôr fim a muitas das nossas guerras e fazer avançar a humanidade.


Embora tenha criticado anteriormente neste blogue os discursos do Secretário-geral da ONU, António Guterres, pelo seu tom dramático que contrasta com a sua flagrante inconsequência, não posso deixar de louvar a sua perseverança em não se deixar vencer pelos sucessivos desaires com que se têm deparado as causas que tem defendido, bem como pela forma corajosa com que tem defendido os princípios e as pessoas da instituição que lidera. No discurso de abertura da UNGA79 (24 Set), Guterres criticou o nível de impunidade “politicamente indefensável e moralmente intolerável” praticado por “um número crescente de Governos” em todo o mundo, desde o Médio Oriente até ao “coração da Europa” ou no Corno de África, tendo traçado um cenário sombrio do mundo actual, que está “num estado insustentável”, onde “guerras acontecem sem nenhum vislumbre de como terminarão” e a “postura nuclear e novas armas lançam uma sombra escura” sobre o planeta. Guterres criticou com veemência a impunidade dos dirigentes que violam os direitos humanos e as normas do direito internacional: “Eles podem atropelar o direito internacional. Podem violar a Carta das Nações Unidas. Podem fechar os olhos a convenções internacionais de direitos humanos ou decisões de tribunais internacionais. Podem fazer pouco caso do direito internacional humanitário. Podem invadir outro país, devastar sociedades inteiras ou desconsiderar completamente o bem-estar do seu próprio povo. E nada vai acontecer”. Sobre Gaza, afirmou, “é um pesadelo ininterrupto que ameaça levar toda a região com ele”; e sobre os ataques recentes de Israel: “Deveríamos todos ficar alarmados com a escalada. O Líbano está à beira do abismo. O povo do Líbano – o povo de Israel – e o povo do mundo – não se podem dar ao luxo de que o Líbano se torne outra Gaza”. Já na sessão comemorativa do Dia Internacional para a Eliminação Total das Armas Nucleares, Guterres afirmou que “Desde o auge da Guerra Fria que o espectro das armas nucleares não lançava uma sombra tão negra. A belicosidade nuclear atingiu um nível febril. Ouvimos até ameaças de usar uma arma nuclear” e que os Estados “devem parar de jogar com o futuro da humanidade”. Embora tenha admitido que “as normas estabelecidas sobre a disseminação de armas nucleares estão a ser desgastadas”, Guterres salientou que a Cimeira do Futuro e o resultante Pacto para o Futuro produziram um novo compromisso global para revitalizar o regime de desarmamento global. Para o bem das gerações futuras, reforçou: “O momento para a eliminação total das armas nucleares é agora”.


Seja como for, parece-me que temos de deixar de apelidar parte da elite do poder internacional de ‘líderes mundiais’ e passar a chamar-lhes o que realmente são, ou seja, um bando de belicistas e sociopatas totalmente desprovidos de empatia em relação à restante humanidade, presente e futura – motivados por desejos de poder ou por ganhos financeiros de curto prazo! Esta minoria demencial, que deveria ser desmascarada (de forma não enviesada!) por uma imprensa realmente livre e com sentido ético (por ora, diversos media digitais independentes, alguns dos quais listei no meu post de Março, ainda vão fazendo esse trabalho), parece achar que sobreviverá a uma guerra generalizada ou a um holocausto nuclear. Isto não é mera ficção científica ou teoria de conspiração: alguns CEOs, bilionários e ‘celebridades’ têm comprado propriedades em lugares remotos ou ilhas isoladas, enquanto outros pretendem refugiar-se nos bunkers que têm mandado construir para esse efeito – ver p.ex. aqui ou aqui! A perspectiva de ser apenas esta gente a sobreviver a um holocausto nuclear ou outro evento apocalíptico é verdadeiramente deprimente. Melhor seria que algum bilionário igualmente desvairado os convencesse a todos a embarcarem na primeira nave espacial para Marte e que ficassem lá para sempre!


Como afirmou Tom Engelhardt num artigo que citei no meu post de Março: “a humanidade está agora em guerra contra si própria… (…) [conseguimos] criar uma forma devastadoramente rápida [guerra nuclear] e outra espetacularmente lenta [alterações climáticas] de nos auto-destruirmos (e a tantas outras coisas).(…) graças em parte à nossa incapacidade de travar as guerras entre nós, parece estarmos a querer assegurar que as alterações climáticas não serão o foco total da nossa atenção como deveriam ser.” No entanto, ao usar “a humanidade” como sujeito abstracto e universal o autor está a incorrer numa grave imprecisão que oculta o facto fulcral de que os principais responsáveis por essa dupla guerra são na verdade uma pequena minoria sociopata e extremista dessa mesma humanidade.


Como se interroga Viriato Soromenho Marques num artigo de opinião recente: “A maioria esmagadora dos cidadãos no Ocidente recusam o suicídio. Como é possível que os nossos Governos e Parlamentos deixem a questão da vida ou morte dos povos do Ocidente entregue a incendiários aprendizes de Dr. Strangelove, como Stoltenberg? As portas do inferno já estão abertas. Vamos em frente?” A este convite só podemos responder com um liminar NÃO! E para além de uma postura de resistência e de rejeição firme da guerra e da militarização, devemos pugnar por uma sociedade e uma visão de mundo que não criem as condições para o recurso aos conflitos armados para resolver disputas por territórios e pelos bens comuns, tal como defende o texto da carta aberta que citei acima. Reproduzo o excerto final: “A luta anti-guerra é a luta dos justos, é a luta ética pela vida. É a reafirmação do primado do espiritual e da luta para regenerar a Terra, para tornar os desertos mais verdes, para devolver o oxigénio aos oceanos, para praticar a fraternidade, para viver a amizade; numa palavra, para devolver a alegria e o amor à vida.

Notas:
É possível assistir aos vídeos das sessões na sede da ONU através das seguintes playlists:
* Cimeira do Futuro (Summit of the Future): aqui 
** 79ª Assembleia Geral da ONU (UNGA79): aqui
Da primeira, seleccionei a intervenção de Niria Alicia Garcia (Youth Native American Representative): aqui.
Da segunda, seleccionei duas intervenções: a da primeira-ministra de Barbados, Mia Amor Mottley (aqui) e a do presidente da Colômbia, Gustavo Petro (aqui).