sábado, 30 de março de 2024

Guerras sem fim – quem as promove e quem beneficia?

War is a drug, and [the media] have chosen to be the dealers. David Bromwich (2023)

If wars can be started by lies… peace can be started by truth. Julian Assange (2011)

The war is not meant to be won, it is meant to be continuous. George Orwell (in ‘1984’)

Este post surgiu como meio de expressar a minha estupefação e indignação perante a recente sucessão de conflitos armados, nomeadamente os da Ucrânia e de Gaza, e as narrativas concertadas usadas pelos governantes e media ocidentais – verdadeiros belicistas (‘warmongers’) – para justificar o seu apoio a uma das forças beligerantes (a Ucrânia, no primeiro caso, e Israel, no segundo), em vez de advogarem as vias diplomáticas de reconciliação. A minha indignação advém não só da hipocrisia gritante daquelas narrativas e da manipulação da opinião pública, mas também da forma como são ocultados os verdadeiros ganhadores das guerras perpétuas (‘forever wars’) – em particular, o chamado complexo militar-industrial (ver p.ex. aqui) – e de como estas distraem a generalidade das pessoas dos outros riscos existenciais prementes, como as catástrofes ambiental e social em curso (ver p.ex. artigos de David Bromwich e Tom Engelhardt que citarei mais adiante). Já tinha aflorado estes tópicos há um ano atrás neste post. Darei aqui ênfase ao papel dos EUA e seus aliados europeus na promoção da guerra, pois é nesse contexto socio-cultural que me insiro, no qual sempre ouvi apregoar a superioridade moral do Ocidente na defesa dos valores da paz, da liberdade e da democracia. É evidente que belicistas e ‘war profiteers’ existem noutras regiões do mundo, incluindo nas potências militares da Rússia e da China. No entanto, não pode haver  desculpa para o modo como os governantes ocidentais têm subvertido os seus alegados valores benévolos, instigando a guerra e manipulando as suas populações para justificar a hostilização, dominação e destruição de outros povos e territórios.


As extensas e acaloradas discussões nos media e redes sociais sobre geopolítica (assunto em que parece haver cada vez mais gente versada…) e sobre quem são ‘os bons’ e ‘os maus’, os anjos e os diabos, nos conflitos em curso, são na sua generalidade superficiais, maniqueístas ou demagógicas, e constituem muitas vezes um impedimento para uma verdadeira elucidação das suas causas profundas (em particular, através da descontextualização histórica) e para revelar a identidade daqueles que os promovem e que deles lucram. Felizmente, existem diversos sites ou media digitais independentes anglófonos que me têm permitido aceder a leituras mais heterodoxas e críticas, como p.ex. Rising/The Hill, The Grayzone, Countercurrents, Counterpunch, Real News Network, Real Left, Other News, Jacobin, TomDispatch, Glen Greenwald, Kim Iversen, Katie Halper, Caitlin Johnstone, entre outros.


A história do aproveitamento pelos EUA (e seus aliados) dos conflitos internacionais para fortalecer a sua posição geoestratégica e para alimentar a sua economia e a sua indústria de armamento, por via do complexo militar-industrial, é infelizmente já longa e anterior aos conflitos actuais. E tem sido documentada e elucidada por diversos jornalistas, investigadores e até militares ou políticos – menciono apenas os livros de Norman SolomonWar made easy” (2005) e “War made invisible” (2023), os livros de William BlumFreeing the World to Death” (2004) e “Rogue State” (2005), o livro de William D. HartungProphets of War: Lockheed Martin and the Making of the Military-Industrial Complex” (2012) e o livro de Tom EngelhardtA Nation Unmade by War” (2018). Nestes livros, os seus autores denunciam não só o conluio entre políticos norte-americanos e os interesses das indústrias militares e de armamento, mas também o lobbying por estas empresas, assim como o papel dos media dominantes na disseminação concertada das narrativas oficiais sobre os conflitos em que os EUA (e países aliados da NATO) estiveram directa ou indirectamente envolvidos (Iraque, Afeganistão, Yemen, Síria, etc.), muitas vezes sem qualquer contraditório ou reflexão crítica. A principal consequência desta atitude e deste modus operandi é um mundo cada vez mais caótico e inseguro, e mais próximo de um conflito generalizado – como afirmou aliás o secretário-geral das Nações Unidas o mês passado, alertando para o facto de o mundo estar a entrar numa “era de caos” e denunciando um Conselho de Segurança incapaz de agir perante a catástrofe humanitária em Gaza (ver aqui ou aqui). A outra consequência é a infantilização e balcanização da opinião pública, submetida a narrativas simplistas e maniqueístas que estreitam a compreensão da complexidade dos contextos históricos e promovem uma amnésia colectiva que requer apenas uma adesão ao lado dos justos e virtuosos, defensores dos valores ocidentais da liberdade e democracia.


O envolvimento dos principais media internacionais na disseminação de informação parcial e na manipulação da opinião pública de forma concertada é do conhecimento público desde a guerra do Vietnam e, mais recentemente, no caso da guerra do Iraque e da promoção da narrativa das ‘armas de destruição maciça’, que afinal não existiam, mas levaram ao arrastar de um conflito que envolveu a presença militar dos EUA durante quase nove anos (2003-2011), com a morte de cerca de 185000 civis iraquianos e o desalojamento de outros dois milhões, para além da morte de 4500 militares norte-americanos - ver p.ex. aqui e também os livros de Norman Solomon citados acima.


Um jornalista que sempre questionou e denunciou a manipulação da opinião pública mundial pelos chamados ‘neocons’ (abreviatura de neo-conservadores, ver p.ex. aqui), com o apoio crucial dos media dominantes ocidentais, foi o repórter e documentarista veterano australiano John Pilger (falecido em Dezembro de 2023), em particular no seu documentário de 2010 “The war you don’t see” - ver também esta retrospectiva recente da sua carreira. Pilger foi um crítico feroz do expansionismo imperialista norte-americano e um activista pelos direitos humanos e pelo jornalismo livre, e denunciou mais recentemente o papel dos EUA e dos media por si controlados na manipulação da opinião pública mundial em relação à guerra na Ucrânia, assim como na hostilização da China por via de Taiwan – ver esta entrevista conduzida por Katie Halper ou esta outra entrevista ao South China Morning Post, ambas de 2023. Neste excerto da entrevista a Katie Halper, Pilger fornece algumas pistas para reconhecer e desconstruir as tácticas propagandísticas mais usadas pelos media, nomeadamente a descontextualização histórica e a mentira descarada. Também a jornalista australiana Caitlin Johnstone tem feito um trabalho notável de análise crítica das narrativas dominantes sobre os conflitos recentes na Ucrânia e em Gaza (aqui e aqui). Destaco este post de 2023 onde caracteriza e desconstrói as estratégias de propaganda mediática na promoção das narrativas do poder, na normalização da insensatez, da injustiça e da guerra, e na indução da aquiescência e da passividade na opinião pública. Excertos: “Propaganda is administered in western nations, by western nations, across the political spectrum — and the really blatant and well-known examples of its existence make up only a small sliver of the propaganda that our civilization is continuously marinating in. (…) it excludes voices that are critical of the established status quo from being heard and influencing people, it amplifies voices (many of whom have packing foam for brains) which support the status quo, and, most importantly, it creates the illusion that the range of political opinions presented are the only reasonable political opinions to have.”


Um outro jornalista australiano, Julian Assange, o conhecido fundador do site ‘WikiLeaks’, teve também um papel-chave na exposição das atrocidades norte-americanas no Iraque e no Afeganistão – ver p.ex. aqui -, que levou os EUA a lançar um mandato de captura internacional e pedido de extradição em 2010, a que se seguiu o seu asilo na embaixada do Equador durante 7 anos, a sua detenção e encarceramento pelas autoridades britânicas em 2019 e o subsequente processo judicial que se arrasta desde então nos tribunais britânicos e que se aproxima agora de um desfecho (ainda incerto) – ver p.ex. aqui ou aqui. Como afirma Chris Hedges neste último artigo, a provação de Assange é uma vingança contra o exercício do jornalismo livre e contra a denúncia de crimes de Estado: “Erase Julian from the public consciousness. Demonize him. Criminalize those who expose government crimes. Use Julian’s slow motion crucifixion to warn journalists that no matter their nationality, no matter where they live, they can be kidnapped and extradited to the U.S. Drag out the judicial lynching for years until Julian, already in a precarious physical and mental condition, disintegrates.” O facto dos media dominantes terem abandonado Assange e deixado de cobrir as evoluções recentes do seu caso, é também uma retaliação pelas duras acusações que ele dirigiu ao jornalismo ‘mainstream’ em 2011, quando afirmou: “Let us ask ourselves of the complicit media, which is the majority of the mainstream press, what is the average death count attributed to each journalist? When we understand that wars come about as a result of lies peddled to the British public and the American public and the publics all over Europe and other countries then who are the war criminals? «Journalists Are War Criminals!» It is not just leaders, it is not just soldiers, it is journalists; journalists are war criminals. And while one might think that that should lead us to a state of despair, that the reality that is constructed around us is constructed by liars, is constructed by people who are close to those that they are meant to be policing, it should lead us also to an optimistic understanding because if wars can be started by lies, (...) peace can be started by truth. So that is our task and it is your task, go and get the truth, get into the ballpark and get the ball and give it to us and we’ll spread it all over the world.(citação retirada daqui).


No que se refere à invasão russa da Ucrânia em Fevereiro de 2022 e a guerra que persiste desde então – na realidade, uma guerra por procuração ('proxy war') entre os EUA/NATO e a Rússia -, é importante lembrar as narrativas usadas pelos media ocidentais que insistiram que se tratou de um ataque não-provocado, perpetrado pelo criminoso e diabólico Vladimir Putin. Quaisquer tentativas de contextualizar historicamente o conflito, destacar a expansão da NATO para leste, realçar as divisões internas na Ucrânia, ou questionar as facções neo-nazis do exército ucraniano ou as posturas autoritárias do presidente Zelensky, foram quase sempre descartadas ou descredibilizadas como argumentação pró-russa ou com acusações de ‘putinismo’. Caitlin Johnstone denunciou num artigo de 2023 a forma drástica e despudorada como a narrativa mediática sobre a Ucrânia mudou após a invassão russa em Fevereiro de 2022 para servir os objectivos dos EUA/NATO. Por outro lado, o apoio financeiro e militar do ocidente à Ucrânia (que, no caso dos EUA, já durava desde 2014) foi justificado como sendo uma forma de defender a democracia e a liberdade na Europa (os famigerados ‘valores ocidentais’) contra o autoritarismo e expansionismo do tirano Putin, que quereria alegadamente restaurar o Império Russo (ou a União Soviética). Não irei aqui entrar em detalhes, mas recomendo a leitura de alguns textos que desmontam as falácias e apresentam argumentações fundamentadas e detalhadas: artigo de fundo de Kristin Christman (“independent researcher on US foreign policy and peace”) que faz uma análise do documento “Project for the New American Century (PNAC) - Rebuilding America’s Defenses: Strategy, Forces and Resources for a New Century” escrito em 2000 e compara as declaradas ambições belicistas e expansionistas dos EUA nele expressas com textos de Putin que têm sido usados para alegar as suas ambições imperiais; artigo de opinião de Viriato Soromenho Marques que invoca o documento da Rand Corporation “Extending Russia - Competing from Advantageous Ground”, publicado em 2019, para demonstrar que as intenções dos EUA de usar a Ucrânia como peão contra a Rússia já estavam definidas muitos antes da invasão russa de 2022; no mesmo artigo, Soromenho Marques acusa ainda a Europa de colapso moral e de rendição face aos interesses norte-americanos: “(…) lançar a mentira incendiária de que a Rússia quer atacar a NATO é criminoso. Putin sabe que isso desencadearia uma autodestruição generalizada. Esta guerra, além de ter enterrado o Pacto Ecológico Europeu, significou uma total subordinação europeia aos interesses do complexo militar-industrial e energético que governa os EUA. O europeísmo foi engolido pela máquina trituradora do belicismo”; já anteriormente Soromenho Marques tinha denunciado, quer a hipocrisia ocidental na sua tentativa de descontextualização do conflito (aqui), quer os riscos anunciados do alargamento da NATO para os países do Leste europeu (aqui); artigo de opinião de David Bromwich onde o autor denuncia o papel dos EUA na instigação da guerra na Ucrânia e o apoio servil dos media na promoção da sua agenda, onde cita um artigo de Gorbachev de 2018 em que este afirma: “The United States has in effect taken the initiative in destroying the entire system of international treaties and accords that served as the underlying foundation for peace and security following World War II.”


Quanto ao ataque do Hamas em Outubro de 2023 e a subsequente ofensiva devastadora de Israel contra Gaza e os palestinos, a hipocrisia do Ocidente, e, em particular, dos EUA, para justificar o seu apoio a Israel foi ainda mais chocante e deplorável. A argumentação que havia sido usada para condenar a ofensiva russa na Ucrânia e a crueldade de Putin deixou de ser válida para criticar a reacção desproporcional de Israel e a obstinação vingativa e criminosa de Netanyahu e do seu governo de direita fanática e radical. Com a agravante de terem tentado branquear as décadas de atrocidades de Israel contra o povo palestino (ver p.ex. aqui), que já tinha transformado a Faixa de Gaza numa prisão a céu aberto – ver p.ex. aqui ou aqui. Também neste caso houve conluio dos media dominantes ao tentarem descontextualizar o ataque do Hamas, adjectivando-o de “unprovoked terrorist attack” ou “Israel’s 9/11”, ao descreverem a ofensiva israelita como “Israel’s self-defense retaliation ou ao terem usado a acusação de anti-semitismo para tentar desacreditar e demonizar quaisquer críticas ou manifestações públicas contra Israel – ver p.ex. aqui (Alexandra Lucas Coelho) ou aqui (Robert Falk). Felizmente, a opinião pública de muitos países ocidentais não se deixou intimidar e tem continuado a manifestar o seu repúdio pelas atrocidades de Israel sobre os habitantes de Gaza, no que foi acompanhada por grande parte comunidade internacional que acusa Israel de genocídio (ONU e Tribunal Penal Internacional). Recomendo a leitura dos seguintes artigos que descrevem o massacre em curso e denunciam a hipocrisia dos EUA e seus aliados europeus: dos autores anglófonos Binoy Kampark (aqui), Jonathan Cook (aqui), Chris Hedges (aqui e aqui), Justin Podur (aqui), bem como dos portugueses Pedro Levi Bismarck (aqui) e Viriato Soromenho Marques (aqui). Destaco apenas o parágrafo final do texto de Kampark: “As the battle rages, Israeli politicians can reflect on some common ground with their counterparts in the United States who fund them well. Both have endeavoured to embrace models of existence that caricature peace even as they ennoble the conditions of war. The United States and Israel share that same tendency that had defined their power for decades: the conditions of peace are always underwritten by a permanent, warlike impetus. The expression from historian Charles Beard, expressed in 1947, never seems to date: «perpetual war for perpetual peace.»” Num artigo mais recente, Andrés Piqueras desconstrói o equivocado ‘sentimento de culpa’ do governo alemão, que continua a dar o seu apoio incondicional a Israel e a hostilizar a Rússia.


Não sou ‘líder político’, nem especialista em diplomacia ou geopolítica, mas proporia que o Ocidente se deixasse de hipocrisias de uma vez por todas e passasse a ser coerente na sua (alegada) defesa dos direitos humanos, da democracia(?) e da autodeterminação, apelando à negociação e à diplomacia, e não à escalada da guerra usando argumentos falaciosos (o que é válido também para a guerra na Ucrânia); que sancionasse o estado de Israel pelas suas atrocidades e incumprimento do Direito Internacional e das resoluções da ONU; e que acabasse com o financiamento e apoio às guerras perpétuas (e às indústrias de armamento)! Tenho noção da complexidade da situação e dos ressentimentos mútuos entre israelitas e palestinos, mas se o Ocidente quisesse realmente a paz e não fosse conivente com os interesses políticos e financeiros dos judeus sionistas, as coisas podiam talvez ser diferentes e o massacre não teria durado tanto tempo, nem custado tantas vidas civis e tanta destruição.


Mas claro que há uma questão fulcral que ainda não abordei e que é a de saber afinal quem lucra com estas guerras. Cui bono? A velha máxima ‘follow the money’ creio que fornece as pistas que faltavam. Podemos começar por constatar que os EUA têm não só o maior número de bases militares espalhadas pelo mundo (entre 600 e 900, conforme as fontes) como têm o maior orçamento militar de qualquer país (em 2022 as despesas militares dos EUA foram 40% do total mundial, seguidas das da China com 13%) – ver pex. aqui, aqui ou aqui. Por outro lado, os EUA são o maior exportador de armamento do mundo – ver p.ex. este artigo de William Hartung baseado na análise do relatório anual do ‘Stockholm International Peace Research Institute’. Em dois artigos mais recentes (aqui e aqui) e no seu livro “Prophets of War” (já citado acima), Hartung revela como o complexo militar-industrial norte-americano é, na verdade, o grande ganhador das guerras que tiveram o envolvimento militar dos EUA, com apoio quer de Republicanos, quer de Democratas, no desbloqueamento do necessário financiamento. De facto, as principais receitas de empresas como a Lockeed-Martin, Raytheon (RTX), Boeing, Northrop-Grumman e General Dynamics, provêm do Pentágono – ver p.ex. aqui. Num artigo para o New York Times em 2023, Eric Lipton fez um resumo da forma como a indústria de armamento norte-americana tem lucrado com as sucessivas intervenções dos EUA no Médio Oriente (Iraque, Afeganistão), assim como com os conflitos mais recentes na Ucrânia e em Gaza. Transcrevo um excerto: “The conflict between Israel and Hamas is just the latest impetus behind a boom in international arms sales that is bolstering profits and weapons-making capacity among American suppliers. The surge in sales is providing the Biden administration with new opportunities to tie the militaries of other countries more closely to the United States, the world’s biggest arms exporter, while also raising concerns that a more heavily armed world will be prone to careen into further wars. Even before Israel responded to the deadly Hamas attack, the combination of Russia’s invasion of Ukraine and the perception of a rising threat from China was spurring a global rush to purchase fighter planes, missiles, tanks, artillery, munitions and other lethal equipment. The surge in sales is also being driven by the rapid pace of technological change in warfighting, pressuring even well-armed nations to buy new generations of equipment to stay competitive. The push to supply more weapons to Israel comes as American military contractors are already struggling to keep up with demand to resupply Ukraine in its war against Russia and help other U.S. allies in Europe like Poland bolster their own defenses. Billions of dollars in orders are pending from allies in Asia, driven by the perception of a rising threat from China.A mesma tese foi defendida por Chris Rea num artigo mais recente onde denuncia o belicismo do ministro da defesa do Reino Unido, o principal e mais fiel aliado dos EUA. Para além do livro de Hartung (“Prophets of War”), mais focado nos EUA, recomendo ainda o livro Shadow World” (2011) do jornalista Andrew Feinstein sobre o negócio mundial do armamento e a corrupção dos políticos que promovem a guerra – é também possível visionar o documentário de 2016 com o mesmo nome e baseado nesse mesmo livro.


A hipocrisia dos sucessivos governos norte-americanos (presididos quer por Obama, Trump ou Biden) sobre a suposta selectividade nas vendas de armas pelos EUA, que alegadamente cumpririam a função de lutar contra as autocracias e promover a paz no mundo, é liminarmente desmascarada ao analisar os destinatários do armamento fornecido, que incluem regimes autoritários como a Arábia Saudita ou os Emirados Árabes Unidos – ver p.ex. aqui ou aqui. No caso do conflito na Ucrânia, uma outra justificação para o apoio financeiro fornecido àquele país nem sequer é disfarçada publicamente – segundo declarações do Ministro dos Negócios Estrangeiros ucraniano (aqui) e da ex-Subsecretária de Estado para Assuntos Políticos, Victoria Nuland (aqui), a ajuda militar dos EUA seria “boa para economia americana” e para os trabalhadores das empresas de armamento! Só não revelaram que a principal fatia dos lucros fica na verdade para os administradores e accionistas daquelas empresas, enquanto o custo humano conta-se em vidas perdidas e na devastação de territórios – ver p.ex. aqui ou aqui. Convém ainda não esquecer que os territórios e infraestruturas destruídos pela guerra terão de ser reconstruídos e esse esforço envolverá necessariamente investimentos avultados. No caso da Ucrânia, o seu actual presidente apressou-se a convidar para esse serviço as gigantes multinacionais norte-americanas de gestão de investimentos, como a BlackRock, JP Morgan e Goldman Sachs, afirmando que a reconstrução da Ucrânia será uma grande oportunidade de negócio: “the largest economic project of our time in Europe” (sic) ou “land of surprising opportunity”– ver p.ex. aqui ou aqui.


Mas não são apenas as empresas de armamento e fundos de investimento que ganham (ou virão a ganhar) com a guerra; já em 2023, as empresas multinacionais do sector energético tinham registado lucros recorde, a reboque do conflito na Ucrânia – ver p.ex. aqui, aqui ou aqui.


Quanto ao belicismo norte-americano e à sua postura imperialista (patentes também nos documentos da Rand Corporation e PNAC, já citados), não podiam ser melhor ilustrados do que nas palavras do presidente Joe Biden no seu discurso à nação a 19 de Outubro de 2023, em que afirmou: “American leadership is what holds the world together; American Alliances is what keep us Americans safe; American values are what make us a partner that other nations want to work with; to put all that at risk if we walk away from Ukraine, if we turn our backs on Israel, it's just not worth it...” ou Just as in World War II, today patriotic American workers are building the arsenal of democracy and serving the cause of freedom.” (invocando a expressão ‘arsenal of democracy’ usada pelo presidente Roosevelt durante a 2ª Grande Guerra, a qual Biden já tinha aliás invocado para descrever as vacinas Covid produzidas nos EUA).


Para ilustrar a questão do desvio da atenção em relação à catástrofe ambiental, recorro a artigos de dois autores norte-americanos. Num texto que citei anteriormente (‘Living on a war planet and managing not to notice’), David Bromwich relembra o papel das guerras na destruição ambiental para enfatizar a irresponsabilidade e malignidade de quem as promove. O autor escreve: “A new war, a new alibi. When we think about our latest war — the one that began with the Russian invasion of Ukraine, just six months after our Afghan War ended so catastrophically — there is a hidden benefit. As long as American minds are on Ukraine, we are not thinking about planetary climate disruption. This technique of distraction obeys the familiar mechanism that psychologists have called displacement. An apparently new thought and feeling becomes the substitute for harder thoughts and feelings you very much want to avoid. Every news story about Ukrainian President Volodymyr Zelensky’s latest demand for American or European weaponry also serves another function: the displacement of a story about, say, the Canadian fires which this summer destroyed a forest wilderness the size of the state of Alabama and 1,000 of which are still burning as this article goes to press.” Bromwich denuncia também a hipocrisia da alegação de que a causa climática seria beneficiada pelo corte na dependência da importação de gás e petróleo russo, relembrando: “That theory got tested a year ago, with the underwater sabotage of Russia’s Nordstream natural gas pipelines in the Baltic Sea. (…) As of late summer, all reporting on the Nordstream disaster seems to have stopped. (…) The Nordstream wreck was only one attention-getting catastrophe within the greater horror that a war always is. An act of industrial sabotage on a vast scale, it was also an act of environmental terrorism, causing the largest methane leak in the history of the planet.” E conclui assim: “the lesson for the United States should be simple enough: the survival of the planet cannot wait for the world’s last superpower to complete our endless business of war.” Outro autor que tem escrito sobre este tema é Tom Engelhardt, p.ex. em “Are We the Dinosaurs of the 21st Century? And How Our Wars Distract Us”, onde afirma: “At a moment when peace couldn’t be more needed so that we could focus on our imperiled future, war (and the threat of ever more of it) seems once again to be what we’re all too willing to put at the very heart of things, including of our news reports.” E reforça: “humanity is now making war on itself, using fossil fuels as its slow-motion weapon of long-term atmospheric devastation, while distracting itself with more localized wars on this planet. And thanks to that, it has no longer become totally absurd to talk about our possible extinction. In a sense, you might say that, with our own special form of brilliance, humanity has managed to create both a devastatingly fast and a spectacularly slow way of doing ourselves (and so much else) in. I’m talking, of course, about those nuclear weapons and climate change. And thanks at least in part to our inability to stop fighting wars among ourselves, we seem to be ensuring that climate change won’t be the full-scale focus of our attention as it should be.”


Finalmente, tenho de confessar a minha profunda consternação em relação à completa decadência e descredibilização dos líderes políticos europeus e ao afastamento total dos tão apregoados ‘valores ocidentais’ – tal como Viriato Soromenho Marques resumiu cabalmente no seu artigo desencantado “A Ocidente, uma desolada paisagem” (já citado acima). Ainda mais chocante tem sido a desfaçatez com que esses mesmos líderes anunciam agora uma nova escalada do conflito com a Rússia, como se fosse algo inevitável e para o qual os cidadãos europeus se devem preparar – ver p.ex. o artigo recente do presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, ou o artigo de opinião do ex-Ministro da Administração Interna, Nuno Severiano Teixeira. Chris Rea denuncia essa mesma atitude bélica por parte do governo britânico, num artigo já citado acima, no qual apela também à construção de um novo movimento anti-guerra. A cedência e o servilismo dos líderes europeus aos interesses norte-americanos por via da NATO estão a colocar a Europa à beira de uma guerra com a Rússia, como denuncia a jornalista Abby Martin neste vídeo recente para a revista Jacobin. Não posso ainda deixar de repudiar o apoio de jornais de referência como o Público na promoção desta agenda sociopata, como se pode constatar num recente podcast com o título elucidativo “Como se prepara a opinião pública para o regresso da guerra à Europa?”, onde participa a jornalista veterana Teresa de Sousa, uma apoiante fanática do imperialismo norte-americano e do servilismo europeu. Constata-se pois que os media continuam, lamentavelmente, a desempenhar o papel de apologistas das guerras ‘justas’, ‘inadiáveis’ e ‘inevitáveis’, tocando os tambores da guerra para captar audiências e angariar financiamentos publicitários, vendendo mentiras e promovendo cobardemente as narrativas das elites no poder. Faço ainda notar os óbvios paralelismos nas estratégias usadas para manipular a opinião pública no caso dos dois conflitos recentes: a descontextualização histórica (o 1º teria começado a 22 Fev 2022 e o 2º a 7 Out 2023), a demonização dos alegados agressores (Putin ou Hamas) e a descredibilização das vozes discordantes (como 'putinistas' ou anti-semitas). É por tudo isto - líderes belicistas e media coniventes -  que estamos novamente à beira de um conflito mundial, com a agravante de terem sido ressuscitados os espectros do holocausto nuclear e da Guerra Fria.


Concluo invocando novamente as palavras premonitórias de Julian Assange em 2011: “The goal is an endless war not a successful war. (…) we have to prevent it becoming normal for there to be a constant War. Very soon within the next few years it will become the normal for there to be a constant war in the West. People will reach maturity and adulthood under the understanding that there is always a war and at that point war will not be something that is unusual or surprising or horrifying, war will become The New Normal.” Proponho ainda, para terminar num tom menos desesperançado, a leitura de dois apelos à paz (em prosa) – o primeiro de Kristin Christman (“Paradigm for peace applied to Russia, Ukraine and the US: Proposal for a peaceful pathway forward”) e o segundo de Bahrat Dogra (“The urgent need for a Peace Movement”) - e um terceiro em forma de poema, da autoria de Robert Cable (“Make all wars cease
”), do qual transcrevo algumas estrofes: “May war in Gaza and Ukraine be unreal dream! / May all wars everywhere be anatheme! / I pray this prayer today with all my heart. / May all wars end and no more ever start.