O tema da agricultura intensiva surgiu recentemente no radar mediático por via da situação grave que se vive no Sudoeste Alentejano. No entanto, a questão não se limita àquela região e já tem um historial de mais de uma década. Uma reportagem recente (Abr 2021) no canal público de TV, pouco antes do burburinho sobre Odemira, veio pôr o dedo na ferida: A Invasão da Agricultura Insustentável (Linha da Frente, RTP). A peça, da autoria do jornalista Luís Henrique Pereira, mostra exemplos de norte a sul do país - da Cova da Beira ao Algarve, passando inevitavelmente pelo olival (super)intensivo do Baixo Alentejo e as estufas do Sudoeste Alentejano - e dá voz a ambientalistas e movimentos locais que contestam os projectos de agricultura industrial e intensiva que estão a alterar de forma drástica e acelerada a paisagem. Entre os efeitos nefastos da agricultura intensiva, são destacados: a perda de qualidade e erosão dos solos, a perda de biodiversidade, a poluição química dos aquíferos e rios, os perigos para a saúde pública do uso de pesticidas, a desertificação, a escassez de água, além dos impactos nas populações locais e a exploração da mão-de-obra imigrante. Surpreendentemente, a reportagem da RTP dá menos destaque às posições dos produtores e do Governo que, sem surpresa, invocam os aumentos de produtividade e de rendimento daquele tipo de práticas agrícolas, defendendo a sua sustentabilidade. Claro que houve quem não gostasse e acusasse a reportagem de sensacionalismo e de se furtar ao contraditório (p.ex. aqui), motivando mesmo o envio pela CAP de um protesto formal à direcção da RTP (aqui). O recente 'caso Odemira' veio mostrar quem tinha afinal razão.
A expressão que usei no título deste post foi respigada de um artigo de 2019 que descreve a transformação radical na cultura do olival no Baixo Alentejo alimentada pela água do Alqueva e que tenta dar uma visão equilibrada do tema, ouvindo os diferentes agentes envolvidos: governo, autarquia, produtores, académicos e ambientalistas. Embora nunca seja explicado o uso do ‘4.0’ no título, presume-se que terá havido três revoluções agrícolas anteriores (de carácter tecnológico) e há um claro pendor no artigo para as vantagens económicas de curto prazo do modelo agro-industrial, com destaque para a citação de um grande produtor da região que pergunta “Querem ver plantação moderna?”, respondendo: “Venham a Portugal e ao Alentejo” e prometendo: “A revolução não terminou e vai continuar”. Um artigo mais recente no Boletim da Ordem dos Advogados faz uma análise mais serena e apresenta uma lista extensa dos impactos ambientais e sociais nefastos dos regadios intensivos e superintensivos, a médio e longo prazo, propondo a sua limitação e o recurso à ‘agricultura de precisão’ e à agroecologia.
Os sinais de alerta sobre as consequências nefastas da agricultura industrial já vêm desde os anos 60 e 70 do século passado, no rescaldo da chamada ‘revolução verde’ do pós-guerra (ver p.ex. aqui ou aqui), mas a consciencialização e contestação surgiram agora de novo em Portugal perante o crescimento explosivo do olival e amendoal intensivos e superintensivos, em especial no Baixo Alentejo. Os alertas e a contestação têm vindo principalmente de alguns académicos nacionais (p.ex. aqui ou aqui), de ambientalistas (p.ex. aqui), de alguns partidos políticos (p.ex. aqui), mas também de movimentos sociais ou locais, como os movimentos Alentejo Vivo e Juntos pelo Sudoeste ou o colectivo Chão Nosso Alentejo. Destaco ainda um post escrito num tom pessoal e emocional por alguém que analisou e auscultou de perto a realidade daquele território, apelidando-a de ‘genocídio’ e de ‘extermínio do povo alentejano’. No entanto, as vozes críticas não se limitam ao território nacional e um relatório do Tribunal de Contas Europeu de 2018 (referido na reportagem da RTP) alertava para o perigo de desertificação agravado pela agricultura intensiva, criticando as políticas incoerentes e desajustadas para o país, em particular a insistência no regadio num país onde a água vai ser cada vez mais escassa.
O olival (e amendoal) intensivo foi também tema de uma Grande Reportagem emitida pela SIC (Alentejo, Azeite e Água) no mesmo mês do programa da RTP referido no início (é possível assistir à 1ª parte aqui). Aqui são ouvidas as vozes de um leque mais alargado de agentes locais e nacionais, mas também dos habitantes. Um artigo de opinião de um agricultor e silvicultor local em reacção a este programa faz um leitura crítica da palavra sustentabilidade, alertando para as suas diferentes dimensões (económica, social e ambiental), e defende uma abordagem mais equilibrada com recurso a boas práticas agrícolas. Deixo uma citação deste artigo: “Como silvicultor e agricultor, tenho a perfeita consciência do difícil que é, por vezes, colocar todas as variáveis na balança. Temos uma exploração de romãzeiras em regime intensivo e, cada ano que passa, tentamos melhorar as nossas práticas agrícolas. Fizemos a requalificação de linhas de água permanentes e temporárias, instalação de sebes biológicas e zonas de descontinuidade, entre outras medidas. Este tipo de práticas faz cada vez mais sentido e, ao contrário de todas as expectativas, nos últimos três anos deixámos de utilizar inseticidas, simplesmente porque permitimos que todo o ecossistema funcionasse. Na natureza é preciso tempo e paciência, algo que o ser humano tem uma certa dificuldade em compreender.”
Termino, invocando as reflexões dos meus últimos posts, assim como a deste outro que escrevi para o blogue do projecto Guarda Rios, com um apelo à sensibilidade de todos os que partilham de uma (est)ética ecológica da atenção e do cuidado no sentido de contribuírem, da forma que puderem, para que possamos recuperar uma sustentabilidade sistémica e duradoura, e para que não prevaleçam as visões daqueles que preferem os benefícios económicos imediatos (que na verdade só chegam a alguns privilegiados) e que defendem a transfiguração paisagística da outrora aridez da ‘planície dourada’ para os actuais 'mantos verdes', mas que, no médio e longo prazo, transformará o Alentejo num deserto infernal.
Nota: à excepção da foto de abertura, todas as restantes foram obtidas por mim durante uma residência do projecto Guarda Rios na região do Alqueva (Aldeia da Luz) em Outubro de 2020.